Eduardo Cintra Torres

O extermínio das massas


G. Wells, o autor de A Guerra dos Mundos, era um socialista convicto e, como tantos intelectuais do seu tempo e de todos os tempos, desprezava as massas.

Livro pioneiro da ficção científica, com uma narrativa imparável, empolgante e inovadora, A Guerra dos Mundos (1898) inscreve-se em absoluto na época em que foi escrito, a mudança do século XIX para o século XX: através da invasão dos marcianos, Wells arranjou uma maneira expedita de exterminar as massas. A multidão, comparada por Wells nesta obra a “um rebanho de carneiros” e a “um formigueiro de pontos negros”, é aniquilada de qualquer maneira pelos invasores de Marte: “Jamais houvera, na história das guerras, uma destruição tão indiscriminada e geral.” Os marcianos bebem o sangue das massas para alimentarem o seu corpo no qual não há aparelho digestivo, apenas cérebro. São muito poucos, talvez uns 20, mas são seres superiores, quem sabe se intelectuais como o narrador. Quando acaba a guerra – e o livro – os marcianos exterminaram um milhão de pessoas. Wells compraz-se a descrever os métodos de aniquilamento dos marcianos. E não é por acaso que ele escolhe os subúrbios e não Londres para primeiro alvo dos extraterrestres. A capital britânica é “esta minha querida e imensa cidade”, enquanto os arredores representam para ele as massas estúpidas e a destruição do campo idílico. A maior parte do livro passa-se nos arredores londrinos. O autor põe na boca de um artilheiro o ódio ao operário e ao pequeno-burguês que no final da segunda metade do século XIX começara a deslocar-se para os arredores: “Todos estes: a espécie de gente que vivia nestas casas, aqueles abençoados empregaditos que estavam habituados a viver à sua maneira – não teriam préstimo nenhum. Não têm a mínima centelha de espírito – nenhuns sonhos ambiciosos nem orgulho; e um homem destes – meu Deus! – que é, além de um animal apavorado e cauteloso?” Mesmo quando visto isoladamente, o homem das massas não passa de “um animal” do rebanho ou do formigueiro. O artilheiro descreve-os com desprezo: “Costumavam, por assim dizer, escapulir-se para o trabalho – tenho visto centenas deles de pequeno-almoço na mão, a correr como selvagens lustrosos para apanharem o comboio, com o receio de serem despedidos se o perderem; se são empregados do comércio, receiam constantemente ter a maçada de compreender; escapam-se com medo de não chegar a tempo para o jantar; ficam em casa depois de jantar, com medo das ruas dos subúrbios”. Este guerreiro propõe ao narrador formarem um grupo de resistentes, só par alguns. Há mesmo humanos que merecem ser exterminados: “Não podemos ter entre nós nenhum fraco ou imbecil. A vida é novamente real e os inválidos são um estorvo e são nocivos: têm de morrer.” Os marcianos não o diriam melhor. Expresso pela ficção, este desejo recalcado de extermínio das massas corresponde a um desejo real que Wells, o intelectual, o visionário, o socialista, exprimiu não uma ou duas mas muitas vezes em ensaios. A segunda metade do século XIX foi um período crucial na formação da sociedade contemporânea: foi no final desse século e no início do século XX que começou a formar-se a sociedade em rede... as redes ferroviárias ligando todo mundo; a rede do telégrafo; surge o automóvel, abrem-se estradas; na economia, os mercados tornam-se nacionais; as bolsas funcionam internacionalmente; surgem as primeiras propostas sérias de criação de uma moeda internacional; e, last but not the least, irrompem os mass media, que deixaram perplexos os intelectuais pois davam voz aos interesses das massas até então silenciosas – são desta época as famosas frases do fundador do Daily Mail (1896) e do Daily Mirror (1903), Lord Northcliffe: “o jornal deve lidar com o que interessa à massa do povo”; “dar ao público o que ele quer”. Pela mesma época, Lenine explicava aos bolcheviques a importância de usarem imprensa própria para chegarem ao poder e inventava um novo tipo de partido, o partido em rede. Este período histórico é de tal forma importante para compreender o capitalismo, a globalização e a sociedade do espectáculo que é perfeitamente ajustado o uso persistente de exemplos de então para ajudar a explicar o presente, como o faz Vasco Pulido Valente. Aliás, alguns dos mais interessantes e mais lidos comentadores da nossa sociedade actual são especialistas neste período ou na época seguinte, como, além de Pulido Valente, Manuel Villaverde Cabral, José Pacheco Pereira, Maria Filomena Mónica ou Rui Ramos. É provável que o leitor actual tenha dificuldade em compreender que intelectuais da mudança do século XIX para o XX ainda hoje tão amados e respeitados tivessem um ódio tão profundo às massas (os seus descendentes transferem despeito ou desprezo das massas para os mass media e para as “audiências”). Nietzsche escreveu que “a grande maioria dos homens não tem nenhum direito à existência e são uma infelicidade para os homens superiores.” Bernard Shaw escreveu que “se desejamos um certo género de civilização e cultura, temos de exterminar o tipo de pessoas que não cabem nele.” Outro autor inglês desejava que caísse uma bomba no Selfridge’s. Em Waste Land, T.S. Eliot compara a multidão londrina a uma multidão de mortos. E D.H. Lawrence defendia que todas as escolas deveriam fechar de imediato, porque “a grande massa da humanidade nunca deveria aprender a ler e a escrever”. As diatribes de Lawrence são das mais explícitas e brutais. Ele defendeu que em certos períodos históricos os homens “devem morrer aos milhões”. E por isso dá “três vivas aos inventores do gás venenoso”. Numa carta de 1908 explicita o seu sonho de aniquilamento das massas: “Se eu pudesse fazer o que queria, construiria uma câmara letal tão grande como o Palácio de Cristal, com uma banda militar tocando suavemente, e um cinematógrafo rodando com brilho; a seguir iria às ruas principais e às ruas das traseiras e punha-os todos lá dentro, todos os doentes, os aleijados, os mutilados”. (Continua...)