Eduardo Cintra Torres

Cenas do terrorismo normal


O efeito do terrorismo é tanto maior quanto for inesperado. Para minorá-lo, em 2004 o Estado britânico avisou abertamente britânicos e visitantes de Londres que a cidade era alvo prioritário de ataques. Só faltava saber quando.

Por ser esperado, o múltiplo ataque bombista não teve o efeito do 11 de Setembro ou do 11 de Março. Fez parte da normalidade do mundo de hoje. Além disso, a espectacular organização da segurança civil britânica tomou conta da situação e manteve um contacto profissionalíssimo com os media e a população. Tal como o Estado britânico, SKY News e BBC World mostraram a actuação correcta ao serviço do público em caso de crise. Auto-limitaram-se, em benefício do jornalismo e do público. Os canais portugueses estranharam não haver mais sangue, gritaria e pânico, tudo aquilo de que gostam e para eles é bom e normal. E disseram que estranhavam. A reacção britânica e mundial às bombas em Londres indica que o terrorismo desta vez perdeu a eficácia nos efeitos obtidos: mata inocentes, mas não pára as democracias e as suas economias. Nem pára a boa televisão, que deu uma lição à má televisão.

Diana Andriga liderou uma equipa que fez um pequeno e apressado mas bom documentário de 20 minutos mostrando como os factos ocorridos na praia de Carcavelos em 10 de Junho não foram um “arrastão”, quer dizer, um acto de banditismo colectivo organizado. O documentário, Era Uma Vez um Arrastão, revela a mistificação criada pela TV e outros media no próprio dia e nos seguintes (disponível em http://www.eraumavezumarrastao.net). Entre outros depoimentos, ouviu quem esteve na praia e não viu nenhum arrastão. É certo que houve no próprio dia alguns testemunhos, incluindo o do comandante da PSP de Lisboa, empolando o sucedido. E houve principalmente o proprietário de um bar da praia, que foi quem telefonou para a polícia, tirou as únicas fotos divulgadas pelos media e depois falou para a TV – este homem quase estabeleceu por si só o «padrão» que as TV e os outros media adjudicaram. O incidente ocorreu num Estado que aparenta não ter autoridade democrática para manter a ordem pública, em que polícias se manifestam com palhaçada na rua e o chefe do Estado telefona para um embaixador estrangeiro a saber se pode ir à Cova da Moura. A ideia do “arrastão” fermentou durante a tarde e foi benesse de Verão para media ávidos do binómio “insegurança” e “pessoas de raça negra”. Os media agarram a ideia de “arrastão” apesar de não ter havido queixas nem feridos. Nem roubos. A TV e outros media empolaram; não investigaram; não olharam com cuidado para as fotos que nos mostraram e que não mostram nenhum arrastão; não cruzaram informações; deram curso a sentimentos de medo despoletados pelo racismo. Os media de massas quiseram que a mentira fosse notícia. Numa adenda ao documentário, o comandante da PSP de Lisboa revela que as televisões recusaram depois desmentir a notícia. Com dignidade e profissionalismo, o responsável corrigiu a sua visão dos factos, mas as televisões não quiseram saber disso para nada. Dias após, Conceição Lino moderou um debate na SICN em que foi ela a única insistindo no medo e na fraude, apesar de os convidados contrariarem sistematicamente a ideia do “arrastão”. Entretanto, o famoso “serviço público de televisão”, que se autopromove com essas palavras até ao vómito, em nada se distinguiu dos outros canais e media que promoveram a mentira e o medo racista e que não quiseram ou apenas não tiveram a coragem de repor a verdade.

A RTP1 vendeu-nos o comentário de António Vitorino como de alguém que pensa pela sua cabeça, quer dizer, que é independente. Isto é uma farsa. Porque o comentário de Vitorino se integra em absoluto nos interesses do PS e do seu governo. Chamar-lhe comentário independente é uma fraude. É propaganda pura, mas com uma cobertura de açúcar para não se perceber. As “Notas Soltas” são uma vergonha do serviço “público”. Espero que esta experiência dos comentários pseudo-independentes, em vez de se alargar a outros partidos, como agora sugere a “Alta Autoridade”, acabe rapidamente no canal pago por todos. A RTP é do Estado, não é dos partidos. Será gravíssimo se a informação da RTP avançar para a partidarização generalizada do comentário e da informação.

Muito se escreveu sobre as imagens da nova família de Manuel M. Carrilho na sua propaganda eleitoral. Constituíram um erro talvez fatal para a campanha de Carrilho porque alienaram o próprio eleitorado que poderia votar nele. Bem podem os camaradas de Carrilho na lista eleitoral dizer que é “normal” exibir a família, mas não é normal para toda a gente. No caso, não é normal para grande parte do eleitorado do PS. Entretanto, julgo que ninguém mencionou um aspecto singular: a terrível qualidade técnica e do argumento do vídeo. Chocou ser tão má propaganda, ser a encenação aberta para as câmaras de uma cena cujo único objectivo era exibir mulher e filho enquanto mulher e filho. Chocou porque a intimidade da cena foi utilizada para obtenção de simpatia para uma campanha política e porque o uso dado às imagens fazia com que Bárbara Guimarães se apresentasse nelas incitando o bebé a chamar papá à câmara de filmar.

O Gato Fedorento deixou a SIC por não aceitar que a SIC generalista programasse sem seu conhecimento partes dos seus programas da primeira série. Embora sirva o bando dos quatro gatos na reorganização do seu trabalho, a atitude é uma chapada na cara da arrogância com que autores e produtores costumam ser tratados pelos responsáveis das televisões. Há dezenas de anos que verifico ou oiço falar de directores que não atendem telefones nem se dignam responder, que fazem os colaboradores esperar dias inteiros à sua porta por uma reunião, que desmarcam reuniões a toda a hora, que mandam produzir programas sem assinarem contratos. É certo que os directores têm de proteger-se de contactos inúteis e sem interesse. Mas não é isso. É arrogância e a má-criação que a acompanha.