Eduardo
Cintra Torres
|
$ Gato ainda muito fedorento |
Agora, depois de o Gato vender dezenas de milhares de DVDs, depois de se transformar no primeiro culto televisivo português em muitos anos, andam agora os operadores generalistas a namorar o Gato. Até a SIC generalista, vejam lá, se vergou ao Gato e passou quinta-feira um “especial” com pedaços da série Fonseca, a primeira série apresentada na SIC Radical. É um conceito de “especial” muito humorístico: o Gato e a SIC Radical já vão na série Barbosa e ainda a SIC generalista vai no Fonseca. Esse Fonseca está com dois anos de atraso. O Gato Fedorento tornou-se em dois anos um minimercado que não se sabe ainda para onde vai caminhar. Começou por um blogue e hoje está na televisão, dobragem de filmes, publicidade, jornais, revistas, livro, DVD, salas de espectáculo e até num estádio de futebol. E já entrou no circuito das entrevistas à imprensa bronca e programas totós sobre “conhecidos”. Este milagre da desmultiplicação tem consequências. O blogue não passa hoje de uma agenda dos programas e dos espectáculos. Os textos na imprensa são pouco trabalhados. E a actual terceira série televisiva, que deveria ser o cerne de tudo o resto, apresenta alguns sketches com menos qualidade (mais longos, menos piada) e chega a repetir sketches de semana para semana, dado que os quatro gatos não têm tempo para criar novidades e encher 25 minutos de programa. Aliás, houve pelo menos um programa que não passou de 20 minutos. Dito isto, convém assentar no essencial: o Gato Fedorento continua a ser o melhor programa de humor português da televisão portuguesa em décadas. A série Barbosa segue o modelo anterior: sketches independentes, a maior parte sem fim aparente, colados por um separador feito de imagens políticas a preto e branco. Os temas recorrentes são a televisão, a forma de representação de políticos, jornalistas, polícias e populares na televisão, os lugares-comuns da linguagem e algumas situações do quotidiano. No essencial, mantêm-se as qualidades e características que aqui critiquei em 2004 (22-03 e 09-08). O humor do Gato surpreende pela redução ao absurdo, pelo inesperado, pelo volte-face final, pela ironia, pelo uso de linguagem erudita, como na passagem em revista de todas as figuras de estilo por Jesus e os seus três (!) apóstolos para renovar a forma de pregação e evangelização (Jesus rende-se à evidência de que já não há mais novidades estilísticas; lá terá que curar um leproso). Alguns dos novos sketches são brilhantes ou ainda mais ousados na inteligência do que as séries anteriores. O episódio da automobilista que pede informações a um local é o mais hilariante. Aparece um popular que dá indicações intermináveis de como deverá ela chegar ao seu destino; a seguir aparece outro que apresenta uma alternativa diferente; e outro; e outro. Os quatro entram em discussão e tentam sobrepor-se enquanto a automobilista desespera. Parte do sketch é visto do lugar da condutora, o que coloca o espectador numa posição que certamente bem conhece: a janela do carro como ecrã de alguma coisa que não se acredita que nos esteja a acontecer. As frases gritadas dos quatro locais são repetidas numa espécie de polifonia vernácula, ritmada e gritada até a condutora desistir. Mas não desistem os quatro populares: correm atrás do carro para continuar a dar-lhe indicações. E, mais adiante no programa, aparecem de automóvel ao lado do carro da condutora para continuarem a dar-lhe as suas quatro versões diferentes do percurso que ela deve seguir. O absurdo é bem patente num sketch como “cuidado com os rebentamentos”: um novo empregado duma firma de contabilidade é confrontado com as habituais explosões que ocorrem dentro do escritório. Um dos seus colegas fica gravemente ferido, mas como verdadeiro contabilista, faz das últimas palavras indicações ao colega amigo de como lançar facturas. E cede-lhe o seu lugar na garagem. Quem já lidou com contabilistas sabe que eles são capazes disso e de muito mais. Os tiques de linguagem originam sketches divertidos como o da “mulher que faz apartes bastante compridos”, personagem criada por Ricardo Araújo Pereira com o hábito que têm muitas pessoas de abrirem parêntesis curvos, rectos e chavetas quando falam, complicando a mensagem simples que queriam transmitir. Araújo Pereira é o único dos quatro “gatos” que consegue caracterizar personagens com voz, expressão facial e movimento corporal (é o único actor, mesmo que não tenha estudado para o ser), enquanto os outros cumprem bem o seu papel dentro do registo naturalista próprio dos programas humorísticos. Como sucedia nas séries anteriores, o Gato é implacável com a demagogia política e jornalística, que uma vez mais desmascara pelo absurdo, como no sketch em que dois candidatos apresentam impossíveis propostas eleitorais, sendo um deles o Super-Homem. A qualidade do programa resulta em grande parte da qualidade dos textos. De facto, a crueza das imagens, a simplicidade do dispositivo audiovisual, o uso extensivo dos escritórios e adereços velhos da SIC e dos arredores de Carnaxide sublinham o valor do que está antes da produção. É uma lição para a produção de televisão em Portugal, mas ela infelizmente não a seguirá: o mais importante é a ideia inicial, a criação textual. Se isso for bom, o programa poderá ser bom. Se não for, nunca o será. Outro aspecto notável é que a facilidade de acesso ao texto humorístico coexiste com uma complexidade referencial e com inesperadas e complexas peripécias ou reviravoltas na construção dos pequenos sketches. Isso garante a satisfação de públicos mais e menos sofisticados ao mesmo tempo. Em resumo, a terceira série confirma as enormes qualidades do humor do Gato, estabelece-o como marco fundamental do humor televisivo português e, sem acrescentar novidade estilística, aumenta a galeria de sketches notáveis. As séries formam uma trilogia com unidade formal e de conteúdo. Os gatos terão agora de decidir se continuam a fazer mil coisas ou se se dedicam a um grande programa de televisão, que é aquilo que realmente sabem fazer melhor. As novas estrelas do espectáculo e da televisão têm sempre de enfrentar o cruzamento de estradas da vida. Para o público e para a história, a pior das escolhas neste caso será, como o percurso de Herman José indica pela negativa, a de fazerem um Gato sem fedor. |