Eduardo Cintra Torres

Povo que cantava


Na presente série do Gato Fedorento um repórter folclorista dirige o microfone a três “mulheres do povo”, quais bruxas de Macbeth, todas alinhadinhas num descampado, envergonhadas nos seus lenços e trajos “típicos”.

A cena é inspirada na série Povo que Canta, de Michel Giacometti e Alfredo Tropa (RTP, 1970-72). O repórter recolhe, embevecido, um canção aparentemente popular sobre temas rurais. Pede às mulheres mais uma. Sai canção quase idêntica à anterior sobre outro tema rural. Pede outra. Sai quase igual às anteriores. O repórter incrédulo pergunta-lhes com quem aprenderam aquelas canções antigas. Elas respondem: “Foi na internet.” O folclore acabou. Os romanceiros recolhidos entre o romantismo de Garrett e o modernismo final de Lopes-Graça são agora arquivos de palavras, sons e imagens para consulta do passado. A morte da cultura rural foi rapidíssima. Em quatro décadas acabaram a arquitectura popular, a música e as ferramentas, processos e socialidades dos trabalhos. Morreu o “povo”. Morreu o mundo rural que o produzia, O Mundo que Nós Perdemos, na expressão do historiador Peter Laslett. Matou-o o rápido desenvolvimento do país desde finais dos anos 60. Matou-o a emigração e a guerra colonial, a industrialização, a cidade, o acordeão, a gravação. E também a televisão. Ela ajudou a matar o Portugal rural dos arados que voavam e do povo que cantava. O último “povo” sabe-o bem. Diz na nova série Povo que Canta um tocador da Beira: “Depois vieram as televisões, que já começaram a tirar um pouco às festas aqui da região.” Mas, por ironia, a televisão foi também o media que, pela mão de Giacometti, registou para sempre pedaços duma cultura popular rica, variada e bela. Os programas de Giacometti e Tropa, bem como o acervo reunido pelo primeiro, hoje da Câmara de Cascais, são um dos mais importantes contributos da televisão para a história cultural do país no século XX. A mesma televisão que diariamente matou o mundo que perdemos regista, com a frequência do cometa Halley, os destroços desse mesmo mundo. A nova série Povo que Canta (RTP1, domingos), produzida e realizada por Ivan Dias e com autoria de Manuel Rocha, é um importante documento etnográfico e um bom documentário televisivo. Os autores visitaram alguns dos mesmos locais onde estiveram Tropa e Giacometti e tentaram recuperar os mesmos sons. Noutros locais, procuraram manifestações escondidas da cultura rural e outras, a que posso chamar “pós-urbanas”, resultando já da busca de raízes ou de reconhecimento de valor cultural na morta cultura rural. É o caso da Brigada Victor Jara, desnecessariamente incluída em vários episódios como “música em segunda mão”, sugerindo uma discutível continuidade. A série não é saudosista, mas, por simpatia para com os seus anónimos intérpretes, não diz o que realmente é: um epitáfio. Interessante, documental, planeada e informada, não deixa por isso de parecer-se a um imenso e longo requiem da cultura de pastores, ceifeiros ou lavradores do tempo em que os arados voavam. O que mais se vê são carolas bem-intencionados que transformam o presente, a everyday life do povo, em “tradição”, quer dizer em passado. No programa das Beiras Alta e Baixa, grupos cantam, à noite, em ruas da aldeia, canções que eram de trabalho. No programa da Beira Litoral, montou-se cenas antigas de fiandeiras de linho alternadas com um grupo de mulheres cantando – numa igreja – um tema de maçadeiras de milho, trabalho que não fazem. No mesmo programa, há uma cena magnífica em que homens da aldeia se emocionam vendo em vídeo os seus pais num programa de Giacometti explicando o seu trabalho. As imagens com quatro décadas mostravam os cavadores exemplificando a técnica da cava colectiva. No novo programa, um antigo cavador explicou como se fazia. Falou no pretérito perfeito – e representou, como actor, a tarefa de antigamente. O programa dividiu o ecrã em dois. De um lado, os mortos congelados nas vivas imagens de trabalho a preto e branco. Do outro, o vivo encenando esse trabalho morto. Quanto à qualidade musical, quase todos os melhores cantos da nova série são exactamente os que não lhe pertencem: os da primeira série, usados profusamente para ilustrar o mundo perdido e os seus actuais resquícios. Alguns momentos recolhidos por Tropa e Giacometti chegam a ser emocionantes, muito mais que quase toda a televisão que se pode ver hoje. Em cenas actuais, o canto rural cristalizou-se em museus e “artesanato”; embora amável, não faz parte das vidas dos que cantam. Numa cena notável do programa do Minho há uma suspensão temporal, é mesmo uma apanha do milho, e o canto sai como antigamente, no trabalho. O texto precisa de nos convencer: “tudo o que aqui se passou foi a sério”. E diz também que se ouve ali um canto polifónico feminino que se “julgava perdido”. Na verdade, assim é. A câmara, por isso, avança pelo rés da terra por entre o milheiral como se procurasse um tesouro. O resto não é “a sério”, como os abomináveis ranchos folclóricos, mostrados para contraste, anquilosados num passado que nunca tiveram e nunca existiu (e que a televisão ajudou a promover, desde o programa de Pedro Homem de Melo nos anos 60). Também não são realmente “a sério” a maior parte das reconstituições que se ouvem nesta segunda série do Povo que Canta. Como a realização juntou momentos da série original, em todos os casos se sente o que foi genuíno e o que é apenas a vontade da tradição. O resto são os construtores de instrumentos tradicionais (“só o artesanato é que pegava nisto”, diz um violeiro minhoto) ou pequenos grupos, mais clandestinos que o PCP(R) ou o PSR, que se juntam na calada da noite, grupos resistentes e sem qualquer expressão nos media. Ou algumas canções recolhidas na Madeira, outra ilha do tesouro, o único tesouro de uma vida de miséria. Esta cultura rural desprezada pelas esquerdas e direitas, pela cidade e pela província, foi substituída pelas culturas populares electrónicas: a urbana e a pimba, que descende enviesada da cultura rural. Actualmente quase só esta última tem acesso à televisão, com um tempo de antena impressionante enxameando de Toys e Romanas, de ranchos e acordeões, os talk-shows da manhã, da tarde e da noite nos canais generalistas. A outra cultura popular, a do povo que cantava, mataram-na o progresso, o povo e a sua rádio televisão.