Eduardo Cintra Torres

Homilia marcelista, entrevista vitoriana


O novo programa Notas Soltas de António Vitorino (RTP1, segundas) é criado como um contraditório a As Escolhas de Marcelo Rebelo de Sousa (RTP1, domingos). E, apesar de Vitorino rejeitar a ideia e a comparação entre ambos, por não ser isso do seu interesse pessoal e político, compará-los é uma necessidade crítica e política.

Comecemos pela forma. Na TVI, Marcelo falava, não com, mas para um jornalista do Jornal Nacional. Não dialogavam, excepto no comic relief, quando trocavam leitão da Bairrada ou cachecóis das tribos da bola. Simulava-se com inteligência o diálogo para se impor o monólogo. Como jornalismo, havia a demissão do apresentador que fazia de boneco para quem Marcelo olhava. Como comentário, a forma permitia a Marcelo expor como queria as suas ideias, embora, como então referi, provocasse repetições de argumentos próprios da apresentação oral. O falso diálogo na TVI foi o processo que permitiu representar audiovisualmente um género da escrita: o comentário, texto escrito baseado na autoridade atribuída pela sociedade, ou pela publicação, ao seu autor. Trata-se dum monólogo em que o comentarista argumenta sem contraditório. Pode um diálogo estar subjacente, tendo em conta a implícita resposta do comentador a argumentos já conhecidos ou previsíveis. Mas mesmo essa presença surda dum diálogo inexistente visa aplacar a própria ocorrência de contraditório à argumentação. O comentário da imprensa não quer o diálogo no seu seio, ou só quer o que lhe interessa. Era o que sucedia com a homilia dominical marcelista na TVI e é o que tem sucedido na homilia dominical na RTP1. O comentador não quer que Ana Sousa Dias intervenha, quer que ela esteja ali, e só corresponde a alguma bucha lançada a medo pela jornalista se ela se integrar no seu argumento de autoridade. Caso contrário, ignora a “interrupção”. Qualquer espectador sente esta contradição nas Escolhas e não a notava na TVI, pois passou-se do boneco silencioso para a boneca que quer falar, interrompendo o comentário. O espectador é enganado pela simulação da forma dialógica: este comentário, para ser fiel à sua ontologia, deveria prescindir de Sousa Dias, como prescindiu de facto de José Carlos Castro ou de Júlio Magalhães. Durante semanas, Sousa Dias e Marcelo andaram a tactear, em busca de um registo adequado. Julgo que ele nunca chegará – nem chegou quando, para vergonha do jornalismo que pratica, Sousa Dias puxou do cachecol do clube e, qual Júlio Magalhães reencarnado, o colocou sobre os próprios ombros, peso populista que dificilmente deixará de carregar. Vitorino e Judite de Sousa anularam a contradição entre as formas comentário e diálogo anulando o género do comentário. Fazem os dois uma entrevista semanal. Também aqui o espectador é enganado. Prometem-lhe comentário e sai-lhe entrevista. Como Vitorino e Marcelo falam entre um quarto e meia hora, não poderiam fazer os programas sem simular ou praticar diálogo. O espectador não aceitaria uma espécie de discurso à nação. Só se o comentário fosse muito curto, o que é possível e existe em rádio e TV. Pretendendo simular o naturalismo da vivência quotidiana, a televisão pede diálogo e pede fragmentação do discurso. É o que sucede com os comentários de Miguel Sousa Tavares na TVI: dialoga com o apresentador e divide o comentário em pedaços durante o noticiário. No seu caso, o formato resulta bem e adequa-se-lhe porque ele é independente e não tem qualquer carta na manga quanto ao seu presente ou futuro empenhamento político. E, jornalista de profissão, não teme a pergunta do colega: as perguntas são integradas no seu comentário, o qual, apesar de temas combinados, pode sofrer oscilações, o que não faz parte das normas da homilia marcelista. Quanto à entrevista vitoriana, ainda é cedo para saber. Estes aspectos formais não interessam apenas enquanto “arte pela arte”. Eles inscrevem-se totalmente nas características que, na TV portuguesa, assumiu o comentário. Numa manifestação da menoridade da sociedade civil, o comentário tem estado quase sempre entregue ao diálogo com políticos no activo, na prateleira, semi-reformados ou falsamente reformados, como é o caso de Mário Soares. Passa-se o mesmo no comentário desportivo: além de Rui Santos (SIC), não existem comentadores independentes. A aldrabice suprema da informação desportiva são os programas em que os comentários sobre os clubes são feitos por fanáticos desses mesmos clubes. Só numa sociedade civil fraca e num serviço público distorcido é que o principal comentário político poderia estar entregue a dois políticos do bloco central, a quem já se proporcionou perguntar, nos seus próprios espaços televisivos, se são candidatos presidenciais. Nos canais informativos ou nos generalistas há poucos comentadores independentes, como Sousa Tavares, Constança Cunha e Sá, José Manuel Fernandes, Sérgio Figueiredo e António José Teixeira (este com a preocupação de não pôr um pé à frente do outro antes de confirmar que está a ser independente). A formatação que o comentário agora tomou na RTP1 mostra a atitude servil da administração e da direcção de informação face ao novo poder. Quais cata-ventos, cederam às pressões públicas do Governo do PS em relação a Marcelo. Se a estratégia de Santana, atabalhoada, foi a de sanear brutalmente Marcelo, a estratégia de Sócrates foi a de acrescentar comentadores da sua área política. A RTP vergou à pressão governamental do PS, como vergou à pressão do Governo Santana para sanear Rodrigues dos Santos. Agora ao serviço do PS, a RTP de Almerindo Marques e Luís Marinho consumou o que Santana disse querer e que precipitou a queda do seu Governo: criou um “contraditório” a Marcelo. E que contraditório! Vitorino é o número dois da Comissão Nacional e é deputado do PS; Marcelo, sendo do PSD, não ocupa cargos políticos. A RTP não pode entregar impunemente espaço jornalístico ao número dois do partido do governo e chamar-lhe “comentário”. António Barreto – também ele independente – ao recusar ser mais um na proliferação de comentadores na RTP, disse que não queria ser tempo de antena. É o que as Notas Soltas de Vitorino são: tempo de antena do PS e do seu Governo. Aí reside a diferença substantiva, não apenas formal, entre Vitorino e Marcelo: é que este, embora enquadrado política e partidariamente, tem uma independência relativa que, entre outras coisas, levou ao seu saneamento pelo então presidente do seu partido e lhe permite criticar em todos os sentidos. Quanto a Vitorino, está no parlamento, é número dois no PS: foi Sócrates quem o pôs na RTP, esta vergou. Vitorino não criticará Sócrates como Marcelo criticou Santana ou até Marques Mendes.