Eduardo Cintra Torres

A ficção volta a atacar


Durante alguns anos, parte dos espectadores inclinou-se para programas “de realidade” em detrimento da ficção.

Os reality shows tiveram qualidades que a ficção televisiva vinha perdendo: surpresa, novidade, vibração do real. Junte-se-lhes a força do directo – que é o coração televisivo – e o ingrediente jogo, com o inerente suspense, e explica-se o êxito rápido e enorme dos “espectáculos de realidade” em todo o mundo. A ficção televisiva tinha perdido vitalidade, criatividade. Muitas séries ficcionais fizeram-se sobre argumentos banais, repetitivos, previsíveis, enjoativos. Além disso, mudou muito a experiência de audiência do espectador: a autonomia financeira das pessoas permitiu-lhes alternativas ao lar doce lar; apareceram outros media, outros lazeres; a fragmentação dos públicos obrigou os canais generalistas a apostarem em êxitos seguros; e surgiu outra fragmentação, mais perigosa para a forma de viver a ficção televisiva, a fragmentação do tempo do espectador, que o leva a entregar-se a muitas coisas com menos tempo para cada uma. O zapping é causa e consequência destas duas fragmentações, a dos públicos por muitos diferentes lazeres, a dos tempos de cada espectador. A produção televisiva não respondeu logo a esta nova realidade, com consequências inesperadas sobre a ficção: uma semana entre dois episódios de uma série tornou-se uma eternidade; centenas de pequenas experiências mediáticas entre os episódios empurravam a série para o esquecimento. Big Brother, Masterplan ou Quinta das Celebridades substituíram a ficção nos espaços imaginários de espectadores: são experiências diárias e a qualquer hora; interrompem o fluxo esperado, como as notícias importantes. Assim, adaptaram-se duplamente à nova experiência fragmentada do espectador dando-lhe novidade e suspense sem pré-aviso. Foi menos por ser “realidade” do que por ser inesperado, novidade e omnipresente que o género do reality show se impôs. E, assim, por agora, continuará com lugar cativo na TV generalista. Entretanto, sucederam duas tendências. Primeiro, os reality show foram perdendo frescura e revelando demasiado a sua ontologia ficcional de “realidades organizadas” para seguirem um guião. Quase toda a “realidade” ocorre nestes programas como a produção quer, como na ficção. Mas o pequeno resto que não estava no guião – o pontapé do Marco, a fuga da Gisela, algum beijo roubado, certa lágrima furtiva – isso tem sido suficiente para criar expectativas no público. O “real” sobrepôs-se à construção narrativa e à encenação, necessariamente artificial. Mas a insistência no género torna o espectador literato e revela-lhe o excesso de ficção dos reality shows. A segunda tendência ocorreu com a própria ficção. Houve mudanças na ocupação do tempo do espectador por séries ficcionais. Quais são as séries de sucesso? As telenovelas, que se instalam no quotidiano sem dar tempo ao espectador a esquecê-las e a estilhaçá-las na voragem da fragmentação; e as séries que conseguem criar uma experiência do espectador, como as séries na Dois sem intervalos, a horas certas, revalorizando a experiência do evento, da liturgia. A apresentação ganha importância. A transformação da apresentação num “evento” tem ocorrido de forma interessante na SIC. Por exemplo, ao apresentar os seis episódios de Até Amanhã Camaradas em apenas duas noites; ou ao estrear Donas de Casa Desesperadas com dois episódios. Mais importantes têm sido as mudanças na própria ficção. A série 24 (Dois, quartas) simula que o tempo da narrativa é o tempo real, correspondendo a velocidade de um à velocidade do outro. Este processo ocorre com alguma artificialidade na literatura, dado que o tempo de leitura é imposto pelo leitor, não pelo livro, ao contrário do que sucede nas artes do directo, como o teatro, a rádio e a TV. No cinema, o “tempo real” foi realizado com grande eficácia em O Comboio Apitou Três Vezes (High Noon, de Fred Zinnermann, 1952) e Duas Horas na Vida duma Mulher (Cléo de 5 à 7, de Agnès Varda, 1961). E na televisão? O tempo do telespectador correspondendo ao “tempo real” existe em todos os directos e subsiste em programas que o usam ou que o transformam em directo enlatado, como é o caso de montagens de reality shows. Daí que, ao seguir o modelo do “tempo real”, 24 emula a reality TV. O argumento da série é totalmente inverosímil e, no entanto, atrai como ímã pela infindável acção e pelo suspense aumentado pelo “tempo real”, que até incorpora o tempo dos intervalos de publicidade nos EUA (os 52 minutos do episódio correspondem a uma hora do “tempo real” do argumento e do espectador norte-americano). Outras séries avançaram para temas tabus, como a inserção do crime organizado na normalidade da classe média americana (Sopranos), o cadáver, o sexo casual e a normalidade da homossexualidade (Sete Palmos de Terra). Estas duas séries são transmitidas por cabo nos EUA, mas atraem audiências “generalistas”: episódios dos Sopranos ultrapassaram as audiências das networks. Outra estratégia ficcional, esta num canal generalista, foi a de simplificar as personagens tanto ou mais que a banda desenhada: é o caso das séries CSI (Las Vegas, Miami, Nova York). O esquema de cada episódio repete-se: dois casos de assassinatos são descobertos pela eficácia científica dos investigadores. Os actores têm o trabalho facilitado: franzem o sobrolho, usam lanternas e microscópios e dizem frases do tamanho dum título de jornal. No género policial, CSI tem o apelo da adivinha (who dunnit?) e permite ver-se episódios soltos, alternados, voando de Miami para Vegas ou Nova York. Com três séries semanais idênticas mas de episódios totalmente independentes, CSI impõe-se ao espectador desatento e fragmentado. Também Donas de Casa Desesperadas é uma série de canal generalista. O autor do argumento tentou vendê-la durante dois anos como “comédia negra”. Fracasso. Mudou de agente. Dias depois, a série foi comprada pela ABC. O segredo estava no género: por baixo do título, o novo agente riscou “comédia negra” e escreveu “telenovela”. De facto, a estrutura narrativa da série é a da novela \u2212 sobre a qual se colocou um registo irónico para donas de casa conscientes e seus dois maridos. Em resumo, numa fuga para a frente, a ficção deixou a banalidade mainstream da programação “para toda a família” e procurou temas “fracturantes”; ao mesmo tempo, alterou a estratégia quanto ao tempo das suas estórias e quanto ao tempo da sua apresentação, para se adaptar ao telespectador fragmentado e encharcado de media.

... E O OLHO VIVO ATACA AO DOMINGO É já na próxima semana: o Olho Vivo passa a sair nas edições de domingo do PÚBLICO a partir de 5 de Maio.