Eduardo Cintra Torres

Tubi or not tubi serviço público


Só os novos países da “Europa”, e as aspas roubo-as a Vasco Pulido Valente, se empenham no festival Eurovisão da Canção. Votam uns nos outros e deixam para os últimos lugares as grandes potências, como a França, a Grã-Bretanha e a Alemanha, como aconteceu na final de sábado.

Os primeiro lugares foram para países como Israel, Rússia, Moldova, Ucrânia, Roménia, Malta, Sérvia-Montenegro, e para a Grécia, que ganhou. A “Europa” é tão importante para estes países que, numa iniciativa nunca vista, o presidente ucraniano subiu ao palco na final. A RTP andou a pedir aos emigrantes que votassem na sua canção, não por ser boa, mas por ser “portuguesa”. Num programa de memórias, Portugal na Eurovisão, centrou-se, como sempre, no período em que houve alguma distinção nas canções vencedoras: o final da década de 60 e início da seguinte, com Desfolhada, Tourada, E Depois do Adeus. Estes verdes anos correspondem ao arranque da cultura popular alternativa, quando, ao “entrismo” do PCP e da extrema-esquerda nos sindicatos fascistas, correspondeu um “entrismo” nas estruturas e nas produções das indústrias culturais (TV, rádio, teatro de revista, etc.). As gerações das culturas populares comerciais que sobreviveram ao 25 de Abril e tomaram conta das indústrias culturais são precisamente as que chegaram na era Zip-Zip e Tourada. Depois, foi o descalabro. A música transformou-se num “conteúdo” de “pacotes” e hardwares. O carácter industrial da cultura popular foi especialmente gravoso para a música. A indústria promove uma música popular sem qualquer distinção. O sobrevivente Bob Dylan, um Baudelaire que canta, escreveu num programa de um dos concertos da sua actual tournée americana: “Eu nem sequer pensaria em fazer música se tivesse nascido nos tempos de hoje.” Todas as 30 e tal canções do Festival que ouvi, incluindo a portuguesa, eram produtos da mesma linha de montagem. Quase todas iguais. Sem “conteúdo” musical, apenas visuais. Ora “cantadas” por “gajas boas” ou rapazes efeminados. É um festival de imagens, com uma animação visual compensando a ausência de música, uma sucessão de enchidos de cada país com uma “linguagem musical internacional”. A canção de “serviço público” da RTP foi cantada por um duo chamado 2B, lido to be, ou melhor, Tubi. Ela, disse-se, representa “uma nova RTP”: a cantiga é uma arma da nova RTP, emissora que se faz simbolizar por uma canção comercial sem qualquer interesse, brilho, beleza, uma canção feita por encomenda a especialistas de jingles publicitários e de propósito para ser comercial e “internacional” (“europeia”?). Como quase todas as outras, foi cantada em inglês, mas a nenhuma isso valeu de alguma coisa, pois não se percebeu nada por má dicção e má pronúncia. Esta “Europa” fala toda “inglês” e faz toda “serviço público”. A “nova RTP” perdeu na eliminatória. Eládio Clímaco, assumindo a camisola da casa com uma conversa atrozmente ridícula e falsa, elocutou em clímax pós derrota: “Parabéns à RTP que finalmente conseguiu uma nova maneira de estar na Eurovisão.” Este evento sem importância é mais um exemplo da solidificação do serviço público de TV na concepção comercial das indústrias populares. A promoção dosTubi, da sua canção, do Festival e dos programas em seu redor contrasta com o ostracismo votado pela Direcção da RTP1 à série Povo que Canta, um regresso à canção tradicional 30 anos depois da série original de Michel Giacometti e Alfredo Tropa (RTP1, domingos de manhã). Esta RTP1, que se auto-intitula “a nossa televisão pública” quando calha apresentar um cheirinho de qualidade, cala essa menção em todo o resto da sua emissão, estruturalmente comercial e concebida em primeiro lugar para obter receitas. Com ironia cortante, Eduardo Prado Coelho escreveu aqui (19.05) sobre o concurso Um Contra Todos (RTP1, segunda a sexta) para desejar que o serviço público nos dê mais programas assim. Mas já dá. São eles que mais contribuem para a RTP1 se manter com o nível de share que deixa felizes todos os governantes, políticos e deputados que precisam da RTP para aparecer de vez em quando no Prós & Contras, no Telejornal, na Grande Entrevista ou no Parlamento. O “serviço público” serve para colocar em antena os políticos do sistema. Desde 2002, a RTP1 tem vindo a ganhar eficácia empresarial, o que permitiu criar-se à sua volta um perigoso unanimismo, como se ela se tivesse libertado da sua perene ligação ao poder político. Isso foi sol de pouca dura. Ajoelhando perante o Governo de Santana Lopes e Morais Sarmento, a administração saneou politicamente a direcção de programa de José Rodrigues dos Santos, atitude que a marcará para sempre da mesma maneira que a recuperação financeira da empresa. Agora já há uma vassalagem ao novo Governo, quer a nível da administração quer a nível da direcção de informação, quer por parte do director da Dois. Como acontece desde há dezenas de anos (excepto sob Rodrigues dos Santos), haverá, de novo, sempre, um lugar num estúdio para um ministro com ânsias de comunicar. A programação tem alguns programas de acerto que garantem unanimismo de comentaristas e críticos, mas os programas comerciais ou comercialmente pensados constituem o cerne e a maioria da programação. Juntamente com o lugar nos estúdios para os ministros e deputados, este é o mesmo modelo de sempre, sem tirar nem pôr, apenas não era eficaz e custava várias vezes mais aos contribuintes. Entretanto, a SIC Notícias apresenta programas que colmatam falhas do operador público, como o excelente magazine de arquitectura Ponto & Traço e o de artes Laboratório. Ou as entrevistas amáveis de Bárbara Guimarães a autores e leitores de livros, que são alternativa à insanidade dos noticiários das oito-nove. E podia referir outros: o magazine Sociedade das Nações, Família Europa ou Falar Direito. Pode dizer-se: mas são programas de cabo, não chegam a todos. Sim, mas estes programas aparecem no cabo ou nos concorrentes privados precisamente porque não existem alternativas na TV gratuita. Veja-se como a Dois deixou escapar um programa que, apesar de importantes defeitos, tinha potencial e em simultâneo apreço público: o programa infantil Galaró, que passa agora para a SIC generalista. O comercialismo da RTP1 – que não faz mais programas de qualidade por os achar “caros” e por recear que não tenham audiência ou desagradem aos políticos –, a crescente burocratização da programação da Dois e a acomodação ao poder do momento são sinais de que o serviço público é quase uma utopia. Ou, como disse um administrador da RTP a Rodrigues dos Santos depois de o sanear para satisfazer o poder, “é a vida”.