Eduardo Cintra Torres

Juras de fidelidade; segredo de justiça


SIC e a TVI estrearam quase ao mesmo tempo programas similares centrados na (in)fidelidade de parceiros numa relação amorosa. A coincidência motivou acusações mútuas de plágio, mas os programas são tão maus que os ataques mútuos de imitação se assemelharam a uma corrida de duas pessoas na rua para ver quem primeiro pisa um cocó de cão. Ambos os programas são abaixo de cão.

Dado que os programas inventam situações embaraçosas, só intervêm pessoas que assumem relações semi-formais ou informais. A TV não se podia meter a sério entre marido e mulher. Juras de Amor apresenta casais de namoradinhos (SIC, segundas, quartas e sextas). Parece genuíno, parece –mas até onde vai a malícia de concorrentes para ganhar prémios e de operadores para ganhar audiências? O clímax do programa é uma colocação publicitária no conteúdo: a entrega do envelope com suposta viagem ao Brasil. Já o programa da TVI é uma verdadeira viagem ao Brasil, de onde o formato foi importado. Em Fiel ou Infiel? (TVI, sextas) as situações são todas inventadas, como em Vidas Reais, esse programa que ostenta o título mais perverso do mundo: “pessoas normais”, sem experiência de actores, representam situações ficcionais perante as câmaras, com alguma margem de improvisação. Ao contrário do cinema neo-realista, que usava não-profissionais para criar ficções vividas ficcionalmente pelo espectador, estes programas usam não-profissionais para simular que as suas ficções são reais. O programa da SIC é tão mal feito que parece saído dum canal de bairro. Tem três apresentadores – tantos quantos os envolvidos na trama, os namorados e o tentador. As duas apresentadoras são tão fraquinhas que só mesmo por serem gémeas a sua presença tem um mínimo de originalidade. Ao pé delas, o apresentador parece um génio: consegue dizer duas frases seguidas. Em vez do formato infantilóide da SIC, destinado “a toda a família” (e com “bom gosto”, tipo classe média...), a TVI escolheu a técnica do chavascal, com um apresentador brasileiro aos gritos, com uma audiência justiceira semelhante à de Vidas Reais e com uma estética próxima do cinema pornográfico. Em Fiel ou Infiel?, o suposto “traído” é confrontado com imagens da “traição” do namorado, a que assistem as voyeuristas audiências em estúdio e em casa. À vista da “traição”, o “traído” diz todos os palavrões que sabe. As cenas captadas por câmaras supostamente ocultas são longuíssimas. Mostram umas gélidas carícias encenadas como as que se vêem nos filmes pornográficos. Os supostos “traidores” nunca se despem totalmente nem chegam ao acto sexual: a TVI é um canal sério, caramba! “Este programa não é um programa erótico”, diz o apresentador brasileiro, “é um programa fiel-infiel.” Por isso só mostra preliminares de filmes porno. Português, o programa segue o formato brasileiro, do qual já mostrou extractos. As legendas bombásticas sob a imagem são estupendas: “O Paulo diz à actriz estar a realizar uma fantasia sexual”; “A sedutora e o Paulo ficam nus na piscina e a Vânia diz ter nojo dele.” As legendas dizem o mesmo que se vê e ouve no resto do ecrã, mas dão-lhe aquela força que só a palavra escrita possui. A produção luso-brasileira origina alguma confusão semântica luso-brasileira. Na mesma emissão (06.05) em que o Paulo “enganou” a Vânia com a “actriz” apareceu uma legenda rica em sentidos diferentes nas duas margens do Atlântico: “A Vânia vê o Paulo cheio de tesão pegar na actriz ao colo.” No final destes preliminares de filme porno, quando o Paulo na piscina já tinha tirado o seu fato de banho e a sedutora o seu soutien, o bufão brasileiro prometeu – e a legenda confirmava durante longos minutos – “Aquilo que vai ver nenhuma televisão no mundo foi capaz de exibir.” Eis, finalmente, a cena de sexo, a pornografia! Mas não, “aquilo que vai ver” nunca chegou a ver-se. A palhaçada a que a TVI se presta! Estes programas repetem a estratégia de Cecil B.de Mille na sua primeira fase em Hollywood, antes do código Hayes: mostrar todas as imoralidades mas terminar com um final moralista. Aqui mostra-se que a carne é fraca mas que namoro certo é que está certo. Primeiro dá-se choque e comédia, a seguir lição moral consensual. Os programas seguem o modelo carnavalesco: transgressão convivendo com o burlesco. Depois, quarta-feira de cinzas. São programas horrorosos, sem interesse, mal feitos, com humor básico ou rasteiro, e ainda por cima intermináveis, aborrecidos. Mas este parece ser o futuro da televisão generalista.

As imagens que a SIC mostrou da Polícia Judiciária em acção no caso da propriedade em Benavente indicam que houve na PJ quem considerasse essa cobertura mediática tão importante como a própria investigação. É preciso compreender porquê. Este tema está no cerne do processo. As imagens mostram: futuros arguidos à porta de escritórios; agentes da Judiciária (a SIC sabia identificá-los, pois tapou a cara às pessoas certas); um agente exibindo (para a câmara escondida?) um saco preto talvez com documentos; as pessoas a serem convidadas a atravessar a rua de um lado para o outro, como se se quisesse garantir que as câmaras escondidas as captavam. Quem na PJ proporcionou as imagens à SIC quebrou de propósito o segredo de justiça. Mas eu aplaudo esta quebra do segredo de justiça; aplaudo a notícia da SIC; isto é bom para Portugal. As imagens puseram o processo, irremediavelmente, no espaço público. Porque procedeu assim a PJ? Porque quis a captação de imagens dos seus agentes em acção? Por motivações políticas? Para a glória curricular dos agentes? Ou porque sabe que haverá terríveis pressões se a opinião pública não estiver a par? Porque duvida da justiça sob pressão? Porque sabe o tamanho do polvo? Porque o sabe maior que o bloco central? Porque sabe que se não actuasse bombasticamente poderia ser vítima de campanhas em alguns media? Será que nos milhares de telefonemas que gravou – e, atenção, deu a conhecer que gravou – a PJ ouviu telefonemas dos arguidos com pessoas do mais amplo leque político-partidário e empresarial? E com jornalistas? A investigação agiu como quem sabe que se meteu com o polvo gigante, aquele tão profundo que só se vê de vez em quando. Já houve centenas de debates sobre a justiça, blá, blá, blá, mas este é o debate que falta fazer. Haverá políticos que o queiram fazer? E polícias? E juizes? E banqueiros? E jornalistas? Por baixo do ruído mediático há um profundo e terrível silêncio.