Eduardo Cintra Torres

O inimigo de si mesmo


Os noticiários dão vontade de parodiar por serem uma construção e uma representação cada vez mais presente e mais repetida na vida das sociedades e dos indivíduos.

Não se passa sem eles, mas, de tanto os vermos, já lhes conhecemos as manhas. O modelo do noticiário falso satírico é antigo e existe há muito, quer como sketches quer como programas inteiros. Na sexta-feira morreu em Nova Iorque, aos 81 anos, o criador do segmento de paródia de notícias no Saturday Night Show, cuja versão actual passa na SIC Comédia. Esse segmento chama-se “Weekend Update” e Herb Sargent trabalhou nele mais de 20 anos. Em Portugal, Herman José usou a receita do falso noticiário há décadas no seu primeiro programa de autor. O programa Inimigo Público, inspirado no suplemento satírico das sextas-feiras neste jornal, apresenta-se como um falso noticiário, com notícias, reportagens e comentários (SIC, sextas). O telejornal é encenado “como se”, quer nos adereços quer na representação dos intervenientes, nomeadamente o falso apresentador, Rui Unas, e as duas falsas apresentadoras-repórteres, Joana Cruz e Ana Rita Clara. Uma das inspirações do Inimigo Público (IP) é o Daily Show with Jon Stewart (SIC Radical), programa que revolucionou o modelo do noticiário satírico porque criou um novo híbrido, que ultrapassa o registo do programa de humor: além das notícias falsas, esse programa por cabo é também talk-show na forma de programa diário em estúdio e com público; no conteúdo, com as suas entrevistas no registo do real e a utilização inalterada de segmentos de vídeo autênticos devido ao seu ridículo, está mais próximo do real do que os programas cómicos em que se ficciona a partir da descrição da realidade, como acontece no IP. O Daily Show recorre a vários tipos de sátira, desde a desconstrução delirante da realidade até à indignação amarga logo envolta em humor, nomeadamente pela improvisação e prestação não-verbal magníficas de Stewart. Precisamente pela sua proposta programática de ser um falso noticiário, o IP é um dos projectos mais interessantes da actual televisão portuguesa, mas, infelizmente, o resultado não é um bom programa de televisão. O IP não cumpre a promessa que traz no ovo. Basicamente, tem dois problemas graves, mas que está ao alcance dos seus responsáveis resolver: primeiro, é televisivamente mau; segundo, tem pouca piada. E os dois problemas estão relacionados. Porque é televisivamente mau? Por causa da sua parte mais importante, a do segmento de “noticiário” vulgar. Quase não passa da leitura de texto escrito. Não articula palavra e imagem, narrativa e imagens em movimento. Na emissão de 07/05, parte importante das “notícias” era ipsis verbis textos da edição em papel do IP. Torna-se aborrecido, retórico, barroco no estilo ornamentado, artificial e desligado do conteúdo. As imagens são irrelevantes. Ali quase não há televisão. Este segmento de “notícias” do IP tem também uma estranha relação com a realidade, pois desvirtua-a a tal ponto, devido à busca rebuscada de piada, que o próprio tema se torna irrelevante. E nas “reportagens” não se respeita a própria construção irónica, pois as “repórteres” explicam ou comentam negativamente a própria situação que está sendo mostrada ironicamente: o pior humor que existe é o que explica as piadas. O Daily Show, programa que mais influencia este projecto, é extraordinariamente divertido, mordaz, hilariante, além de muito televisivo. O IP, com as suas piadas escritas enroscadas na inteligência dos seus autores, nunca dá vontade de rir como o Daily Show. Quanto muito, vai-se sorrindo. Em parte, a ausência de humor do IP deve-se ao falhanço do seu uso do absurdo. Os autores dos textos não conseguem abandonar a forma lógica e a ilusão realística para criar uma outra forma que permaneça inteligível para o espectador. Quanto à apresentação, as duas “jornalistas” são tão irritantes quanto algumas autênticas repórteres que pululam nos noticiários legítimos, o que cria logo um calafrio. Rui Unas não resolve a falta de humor com a sua expressão não-verbal. Alguns dos seus trejeitos visuais não são muito diferentes dos que fazem os actores no final de cada anedota dos Malucos do Riso. Para compensar, o IP tem bons momentos de humor no “comentário político” de José de Pina e nas reportagens “no sítio”, a cargo de Filipe Homem Fonseca e em especial de João Quadros. Este último prossegue aqui o seu modelo de humor negro em registo português suave: são piadas aleivosas sem poupar os alvos mas com a maior das canduras, como já fazia no seu programa O Período (SICR). Não conheço outro humorista português que consiga safar-se neste modelo, o que só é possível porque as piadas são boas e inteligentes. Tal como o “repórter no sítio”, também o “comentário político” de José de Pina reproduz fielmente uma situação televisiva e em linguagem televisiva. Pina recorre com eficácia e humor a um género igualmente difícil de alcançar: usa uma dupla ironia do tipo da que Eça escreveu para o narrador Z. Zagalo no Conde d’Abranhos: a personagem criada, o comentador, desconhece a estupidez do seu discurso, o qual, por ser estúpido, revela a comicidade do seu objecto, neste caso a vida política portuguesa. Cabe ao espectador descodificar não só a estupidez do comentador como a do objecto do seu discurso. Tal como o secretário de Abranhos na novela de Eça, Pina apresenta-se como amigo de todos os políticos de quem, pelo registo irónico, goza. Há ainda um lado burlesco no tratamento em registo sério (cara fechada, fato escuro) dos assuntos triviais do quotidiano político. Os momentos de José de Pina e dos “repórteres no sítio” não são suficientes para salvar o IP. O programa é demasiado longo (45 minutos), certamente para permitir à SIC um interminável intervalo para publicidade e autopromoções. O programa não consolidou audiências, o que levou a SIC a condená-lo à morte ao mudá-lo, na semana passada, para a madrugada de sábado. A continuar assim, o IP terá queimado o conceito do programa do “falso noticiário” na televisão portuguesa. Se vivêssemos num universo concorrencial, poderia surgir um outro “inimigo público” com mais graça e sendo boa televisão. Mas na miséria franciscana do negócio televisivo português, o mais provável é matar-se a galinha dos ovos de ouro ainda antes de ela pôr o primeiro.