Eduardo Cintra Torres

Transposições


Dizer a verdade traz enormes dissabores. Na entrada de 26 de Maio de 1908 do seu diário, Manuel Laranjeiro reproduz palavras ouvidas a um retornado do Brasil: “Isto é verdade, mas não se diz. A verdade não se diz.” Os jornalistas, que trabalham sobre o real, sabem muito bem o que isto significa: “A verdade não se diz.”

Agustina Bessa Luís escolheu a ficção para dizer a verdade – a verdade sobre as pessoas de agora ou de antes. O verbo fez a luz dela: “Quando aprendi a ler, no mundo fez-se luz e passei a compreender tudo”, escreveu. Não era ela a luz, mas veio para mostrá-la. Ao segundo dia já escrevia. Sendo ficção, a coisa passa sem que a incomodem demasiado. Tem boa crítica, boas vendas, bons prémios e saúdam-na quando sai à rua. E vai rindo um riso que se esconde nas páginas mas se vê nos ecrãs. Quando a entrevistam também diz a verdade. Com a idade que tem, já não se importa, e diverte-se. Várias vezes os entrevistadores televisivos ficam incomodados. De tão rara, a verdade luz surpreende. O documentário Nasci Adulta e Morrerei Criança (A Dois, 15/04) mostra, logo pelo magnífico título, essa insolência da infância que só alguns privilegiados e corajosos levam consigo até à morte. O programa tem excelentes depoimentos, mas o melhor é Agustina por ela mesma, confirmada pelos outros e em especial pela filha, Laura Mónica Baldaque. Realizado por António José de Almeida, é um valioso documentário. Entrega a palavra a Agustina e às testemunhas e críticos, e deixa para si mesmo transformar esse material num objecto audiovisual. Consegue-o com enquadramentos acertados dos depoentes, em especial um de Agustina tapada com um xaile à frente de uma bela árvore que mostra todos os ramos; com o regresso de Agustina às suas paisagens; com a imagem recorrente duns pés de menina saltando à corda, que é subir acima do mundo olhando-o concentradamente para passar o obstáculo; e com o momento – poético, e só por isso verdadeiro – de pôr uma caterva de gente ao acaso no Porto lendo um trecho d’A Sibila. Agustina depõe irritada contra uma adaptação que Manoel de Oliveira fez de um livro seu. E Oliveira diz que respeitar o romance seria copiá-lo à mão. O problema das adaptações – ou transposições da escrita para as imagens – é tão antigo como o cinema, mas não se pode limitar a essas duas artes. Coloca-se na passagem de uma obra de um qualquer media ou arte para outro: da literatura para a ópera ou para a pintura, do cinema para a televisão ou vice-versa, do teatro para o cinema, etc. Como apresentar ópera na televisão? E poesia? A ópera televisionada é quase sempre uma desilusão porque música, encenação e representação perdem no ecrã a magia do espectáculo. Afinal, a maioria das óperas não é transposta, apenas captada no palco por câmaras: a TV recusa ser ela mesma e acaba por não ser nada. Christian Chaudet, realizador de TV, pegou numa gravação em CD da ópera de Igor Stravinski O Rouxinol e criou uma fantasia feérica com animação 3D em cenários irreais ou nem tanto, antes reinventados, como a Cidade Proibida (ARTE, 12/04; repetição a 05/05, 00h40). A obra de Stravinski serviu a Chaudet para mostrar a necessidade de “criar novas linguagens da imagem” para a música. E para moralizar: o rouxinol é preso pela sociedade do espectáculo, onde rouxinóis mecânicos monopolizam o prime-time. Mas só a voz dele tem o poder da poesia e da emoção. O resultado não é uma encenação captada academicamente, como é hábito, mas uma transposição para TV. A música perde-se? As palavras perdem-se? Não. O espectáculo operático perde-se? Sim, mas ganha-se outro: o espectáculo televisivo, a televisão como arte. Pode repetir-se o feito? Chaudet precisou de três anos. Como a voz do rouxinol, esta transposição é única. Quase sempre indústria, a TV não tem tempo nem dinheiro a gastar com rouxinóis. Noutra escala, o programa Voz enfrenta o mesmo desafio: neste caso, transpor um poema para o ecrã televisivo, para uma linguagem diferente (RTP1). Os 14 programas já emitidos, de qualidade desigual, têm a deliberada intenção de não repetir o modelo televisivo histórico, de João Villaret: o diseur em estúdio, voltado para a câmara, acompanhado ao piano. Actualizado de forma inovadora, era ainda esse o modelo de Mário Viegas e das suas Palavras Ditas. Voz encena os poemas em cenário “natural” (uma estação, um quarto de hotel, uma fogueira no campo, um parque); o declamador não é o “clássico” que investe na interpretação e na dicção, antes o inesperado (Cristina Branco, Kalaf, Sónia Tavares) ou o actor de uma nova geração ou nem tanto (Catarina Furtado, Beatriz Batarda, João Reis, Miguel Guilherme, Virgílio Castelo); a música é intensa; há palavras dispersas impressas sobre o ecrã, valorizando com alguma diafaneidade a origem de tudo, a palavra escrita; e há o golpe televisivo final: a montagem, a manipulação do realizador-editor sobrepondo a sua criatividade à do poeta. Às vezes resulta: a repetição de palavras ou de versos – não pelo poeta, mas pelo realizador. Outras vezes resulta a encenação, como o cemitério de Agramonte para Nada fica de nada, de Ricardo Reis. Outra vezes resulta a música, como na Valsinha de Vinicius de Morais, embora noutros poemas a música seja apenas ruído. Outras vezes resulta a surpresa da forma de dizer, como Dilema, de António Cícero, por Kalaf. Mas o que resulta mesmo é quando se valoriza a força da poesia pela qualidade da interpretação, incluindo a da dicção, que é deficiente em vários poemas. É lamentável que as pessoas não saibam dizer a sua própria língua quando têm de gravar para sempre um poema. Não é o caso de Guilherme ou de Batarda, da irrepreensível versão de Amor é fogo que arde sem se ver pela actriz brasileira Sílvia Pfeifer ou da emocionante Valsinha pela cantora Manuel Azevedo, que a diz como se a cantasse, que roda com a câmara como se a valsasse, num abraço ao poema magnífico, talvez a melhor das 14 transposições televisivas destes poemas. A concentração da câmara na declamadora, o acordo entre o movimento de ambas e o conteúdo do poema, a música sugerindo a versão de Chico Buarque – o equilíbrio frágil da criação artística conseguiu aqui dar um belo banho televisivo ao poema sem o deitar fora. Os limites da transposição estão no perigo de a criação do novo objecto, o programa televisivo, impedir a apreensão e o usufruto do poema sua razão de ser. Isso acontece nalguns casos de Voz; mas os casos de êxito desta experiência pioneira na transposição incentivam a continuação do projecto.