Eduardo Cintra Torres

Um casamento e dois funerais


Assombrosa coincidência: as mais mediáticas dinastias da história dos humanos – o Vaticano de João Paulo II, a coroa britânica e o Principado do Mónaco – concorreram na atenção mundial ao mesmo tempo.

O mundo global é uma aldeia, como dizia o outro, não tem capacidade de encaixe para tanto evento, tanta emoção, tanta cerimónia. As instâncias do poder reorganizaram os eventos para não coincidirem. O Papa, que a todos venceu nas dimensões espiritual e mediática, partiu antes e congregou toda a atenção do mundo. Primeiros milagres do Papa depois de morto: adiou por um dia o casamento pecaminoso do herdeiro da coroa inglesa e adiou por uma semana o funeral do príncipe do Mónaco, o mais terreno dos reinos. Depois do espectáculo único da agonia na sua janela indiscreta, da morte e cerimónia fúnebre de João Paulo II, o casamento de Carlos e o funeral de Rainier foram anti-clímax a que a televisão não poderia corresponder com as mesmas atenção e emoção. Demasiados eventos desorganizam a vida das televisões. E enquanto o Papa era universal e era do outro mundo, Rainier e família, Carlos e Camilla são muito cá deste mundo de crimes ou escapadelas, traições e paixões como o sexo e o jogo. Dos três eventos, o primeiro parecia mais certo e justo que os outros. A mediatização do papado de João Paulo esteve ao serviço da propaganda fide; a mediatização das outras duas dinastias resulta do paradoxo que são as monarquias e sucessões dinásticas pelo sangue no mundo contemporâneo. A monarquia é o regime político em que a fornicação dos titulares é um assunto de Estado. Estando a continuidade funcional do regime dependente da descendência, ela torna-se uma preocupação institucional. Compreende-se a primitiva curiosidade dos plebeus pelos pequenos acontecimentos da actividade sexual de reis e rainhas, herdeiros e herdeiras e todas as famílias aristocráticas não coroadas para quem a transferência do apelido e da “casa” através do sangue é também vital para manter a racionalidade do sistema. Monarcas, herdeiros e aristocratas fornecem assim conteúdos legítimos à imprensa e aos media em geral. Não foram os media modernos que inventaram esta atenção à vida que chamamos privada das pessoas cujo poder social, real ou imaginário, se transmite pelo sangue. Há centenas, milhares de anos, que povo e poderosos se preocupam com estes temas no espaço público. O que sofreram os nossos antepassados quando um ou outro rei tinha dificuldades em criar descendência! E que dizer do belo Pedro V e da sua Estefânia, mortos virgens? Os tons trágico e patético, que gostam de andar juntos, misturam-se quando reis e rainhas não cumprem a primeira das suas obrigações: ter filhos. Toda a gente fala do assunto, porque é de Estado. A vida privada das famílias reais foi e é pública. As partes privadas de reis e rainhas dizem respeito a todos, à nação, ao Estado. Quando a duquesa de Berri pariu um desejado herdeiro Bourbon em 1821, assistiu ao parto o marechal bonapartista Suchet. Desesperada por demonstrar aos inimigos da monarquia que o filho era seu e não uma criança substituta, a duquesa pediu a Suchet que puxasse pelo cordão umbilical: “Mais tirez donc, M. le Maréchal!” A indústria cor-de-rosa transformou estes ponderosos temas em negócio contínuo e próspero. A burguesia remeteu a vida privada para o lar e inverteu a escala de valores anterior. A afirmação do indivíduo como cidadão faz-se pelo trabalho e pela obra, dois valores que dificilmente se transmitem na cama. Por extensão, os detalhes da vida íntima de presidentes e artistas não estão no âmago da sua vida social. A “opinião pública” acha muito bem que Jorge Sampaio deixe o fotógrafo à porta e acha muito bem que os paparazzi persigam, com lentes macroscópicas, adúlteras princesas de bikini. Vivemos entre os dois paradigmas legítimos: o do cordão umbilical da duquesa de Berri e o da recusa de divulgação da vida privada de cidadãos públicos. O segundo casamento de Carlos foi um evento assumidamente envergonhado da coroa. Não foi real. Não foi em Londres e não teve rainha. O fantasma de Diana de Gales acinzentou o evento. Não houve simpatia popular. Mesmo assim, as televisões tentaram inventá-la, contrariando o tom. Os repórteres de serviço (ao serviço do evento, não dos espectadores) estiveram à beira de inventar multidões em Windsor e Escócia que os olhos desmentiam. Quiseram fazer um conto de fadas do que era um conto de outra coisa. A televisão contrariava a própria intenção da monarquia de fazer do casamento uma cerimónia de reparação de um erro, de ponto final numa tragédia, e não uma cerimónia de começo. Este casamento, assemelhava-se, assim, a um enterro, quer formal quer espiritualmente: sem pompa, sem alegria. Quis o destino que fosse adiado pelo funeral do Papa e ficasse entalado entre esse e o funeral de Rainier. O Mónaco é uma dinastia mediática por destino e por vontade própria. O casamento de Rainier com a protagonista de Janela Indiscreta anunciava a fortuna da indústria cor-de-rosa. Agora os media tinham que incensar Rainier, o homem que lhes deu matéria-prima por meio século. A sua morte conseguiu pôr a choramingar os circunspectos correspondentes dos canais portugueses em Bruxelas, sempre tão marcados pelo jornalismo centro-europeu submisso aos poderosos dos poderes democráticos. Fizeram inúmeras reportagens e directos, encomiando o extraordinário papel de Rainier na transformação do Mónaco em paraíso fiscal e atraente casino. Os seus filhos, os três estarolas, quase passaram a poços de virtudes. Felizmente, a cerimónia fúnebre de Rainier não correspondeu às expectativas mediáticas de espectáculo. Foi como devia ser. Triste, sem grande ostentação: o funeral de um príncipe, não de um rei. O Mónaco reduziu-se à sua verdadeira dimensão. Só a TVI, fiel às emoções rosadas, o transmitiu na íntegra. Na igreja, o comentador “especialista” da TVI conseguiu não se calar durante o momento em que mais se revelaram nos príncipes órfãos as emoções, induzidas pelo Adagio para Cordas do compositor norte-americano Samuel Barber. O “especialista” lá informou, com bom sotaque francês, que se ouvia o “adagio de Barbier, perdão, de Barbet”. O som da orquestra era de fazer dó sustenido. Talvez fosse a orquestra do casino, não sei, mas a mesma desafinação marcou as prestações do coro. Fraquezas humanas que, na hora da morte, trazem a lembrada humildade do pó que volta à terra. Voltamos ao princípio. Haverá mais eventos.