Eduardo Cintra Torres

"A maior multidão do mundo"


Há duas semanas, visitei em Ávila o Convento de Santa Teresa. O monumento, construído sobre o local onde nasceu a santa, é horroroso. Pertence à arquitectura cristã do século XIX, porventura a pior de todos os tempos em qualquer categoria.

No exterior, do lado direito, há um pequeno espaço onde se podem ver relíquias da santa e comprar as suas magníficas obras com capas de fugir, postais e aquilo que antigamente se chamava “santinhos”, uns pequenos cartões representando figuras religiosas que se expunham nalgum lugar ou serviam como marca de livros. O espaço das relíquias fica depois do das compras. Entre as relíquias, vi um autógrafo de Teresa e o resto de uma sandália, mas o que mais me impressionou foi um pequeno tubo de vidro que conserva um dedo da santa. É o dedo anelar direito e parece um torresmo que os séculos deixaram murchinho. Outros tempos. Agora, felizmente, as relíquias são virtuais e não ferem a dignidade física das pessoas que se admiram. Do milhão de pessoas que passou em frente do féretro de João Paulo II, muitos tê-lo-ão feito para guardarem a sua relíquia virtual: uma fotografia tirada com o telemóvel. Na RTP, uma emigrante portuguesa no Luxemburgo estava feliz por ter conseguido tirar uma fotografia ao Papa, sonho que sempre alimentara, porventura com ele vivo. Houve quem conseguisse tirar oito fotografias nos 30 segundos em que se podia estar perante o corpo do papa. Luca Sabata, o polícia italiano que disse que nunca usará as fotografias “como screensaver ou uma coisa dessas”, confirma o seu valor como relíquias. O féretro do papa favorecia a captação destas imagens. Estava colocado num estrado com uma inclinação num ângulo sublime (cerca de 20 graus), com a cabeça mais alta que os pés, criando a ilusão da elevação aos céus. Só me lembro de ter visto esse efeito visual numa obra-prima de Francisco de Zurbarán que está no Louvre, o Funeral de S. Boaventura, de 1629: ele pintou o santo num branco intenso e, para acentuar a elevação aos céus, colocou-o num ângulo de cerca de 30 graus em relação à horizontal do quadro. Porque é a fotografia digital dos peregrinos, próxima da imaterialidade, uma relíquia? Porque é uma imagem que foi captada directamente e não por um media. Foi captada pelo próprio ou por alguém próximo, é insubstituível, não há outra igual, e é sua. Desta forma, a fotografia captada em São Pedro tem o mesmo valor simbólico de uma – impossível nos dias de hoje – relíquia retirada ao corpo, ao vestuário ou aos atributos da pessoa adorada. Apesar de o próprio João Paulo ter definido em 1996 ritos funerários para os papas que proíbem fotografias do pontífice morto, excepto por fotógrafos acreditados, o Vaticano autorizou tacitamente as fotografias feitas com os telemóveis, o que se inscreve na adequação das práticas religiosas aos tempos da imagem, mediática ou não, de que o papa foi mestre e símbolo. Na Basílica de São Pedro, a imagem tornou-se um ritual dos peregrinos. É possível que a própria transmissão televisiva seja ela mesma uma relíquia virtual – neste caso, apenas memória – para muitos espectadores.

Há poucas dezenas de anos, dar palmas não era uma manifestação de apreço universal. Quem andou pelos concertos na província sabe que no final das actuações o povo mantinha-se em silêncio grave – quando gostava não mostrava. Agora, batem-se as palmas nos espectáculos e nos enterros, assemelhando-se os rituais alegres e os tristes, os ficcionais e os reais. A multidão aplaudiu os discursos e a saída de cena do caixão de João Paulo II da Praça de São Pedro no final da missa: as mesmas palmas que marcam hoje os enterros de cantores e actores. Trata-se de uma expressão de apreço da era da sociedade do espectáculo em que o Papa se inscreveu ao actualizar a técnica católica de propaganda fide, de propagação da fé.

Esta tragédia televisiva não foi como as outras. Foi-se fazendo com a decadência física do Papa, mas o tempo caracterizável como trágico durou pouco mais de um dia (como nos gregos), entre sexta-feira e a morte no sábado. A tragédia do acto, não a da televisão, na verdade não existia, dada a relação pacífica de João Paulo com a morte. Foi substituída pelo drama, pelo melodrama, pela transmissão ininterrupta, pelos noticiários a partir de Roma, pela fusão do jornalismo com a propaganda e pela importante actividade televisiva de construção da multidão durante seis dias. “O homem sabia como construir uma multidão”, disse a caminho de Roma, sobre João Paulo, entre a admiração e a inveja, um outro especialista em comunicação, Bill Clinton. A expectativa em relação ao gigantismo da multidão não foi defraudada. À figura do Papa, aos sentimentos que despertava, juntou-se a cobertura mediática intensiva e excessiva, chamando mais multidão à multidão que chega: o espectáculo da multidão que cresce de dia para dia, da “maior multidão do mundo” que se vê na maior praça do mundo ocidental, foi o aspecto televisivo mais significativo desta enorme semana que começou com a agonia do Papa e terminou com a entrada, essa sim, trágica, do féretro em São Pedro, sem que o pudessem seguir poderosos, multidão na praça ou espectadores televisivos. Depois, o epílogo, o enterramento na Basílica, que – por ser epílogo – não teve imagens em movimento, apenas fotografias, fotos digitais como as tiradas pelos telefones celulares do povo, epílogo sem som, prova icónica de que se encerra a cerimónia. O Vaticano sabe o que faz. A cerimónia de sexta-feira foi seguramente uma extraordinária performance, um espectáculo raríssimo, antigo, profissional e perfeito, mas um espectáculo que não se deve equiparar a outros espectáculos, mesmo com os seus exageros de jornalistas televisivos mais papistas que o Papa, mais lutuosos que os cardeais, mais chorosos que os peregrinos. A cerimónia televisiva do Vaticano é diferente de Hollywood porque é um espectáculo com espiritualidade: as semelhanças formais estão lá, mas a diferença de conteúdo contraria a comparação cínica.