Eduardo Cintra Torres

A boa morte


O longo do segundo milénio, o sentimento de um ocidental perante a morte, bem como todas as representações simbólicas em torno do fim da vida transformaram-se radicalmente. Só no século XIX começou a instalar-se no Ocidente o medo e a negação do passamento. A morte desapareceu da vida pública: tornou-se uma vergonha, resultando do medo visceral de cada um em enfrentá-la. E, empurrada para os hospitais, desapareceu da vida privada das famílias.

Num dos seus livros sobre a história da morte no Ocidente, Philippe Ariès relata a morte de um amigo seu, padre jesuíta, que, num hospital, arranca a máscara de oxigénio e declara querer viver a sua morte. Durante séculos a morte foi domada e o indivíduo vivia bem com ela; preparava-se. Encontra-se precocemente em Sócrates, um cristão antes de Cristo, a morte domesticada que marcou o Ocidente até ao século XX. Quando chegava, a morte era longa e bem vinda. Há belas narrativas medievais de homens preparando-se para ela, como a descrição poética da morte de Afonso Henriques num texto medieval posterior. Para pobres ou ricos, essa era a boa morte, que subsiste hoje em confrarias e apelidos. A pior, mais temida das mortes era a que o século XX preferiu: a morte repentina. Os textos mostram que, tal como o nosso Afonso, todos os poderosos e importantes viviam a morte publicamente: os moribundos recebiam nos régios aposentos os que se vinham despedir. João Paulo II rejeitou a morte envergonhada e temida do século XX e preferiu a morte domesticada das Idades Média e Moderna. E fê-lo na íntegra: viveu a sua morte, pacífica, longamente, tomou-a nas suas próprias mãos, recusando nova hospitalização, e viveu-a em público, tão em público quanto é possível no início do século XXI. As últimas imagens públicas do Papa, no domingo de Páscoa, foram impressionantes: o dono da palavra dos cristãos no mundo tenta falar da sua janela e não consegue; os movimentos tornam-se descontrolados; a mão invisível da ceifeira torna-se visível por um instante e surge a retirar o microfone da frente do Papa; faz recuar a cadeira móvel e o Papa desaparece enquanto a foice fecha as cortinas. É o fim público de João Paulo II. Errou um dos padres que a TV portuguesa chamou aos estúdios na sexta-feira quando disse que o Papa morria sem espectáculo, pois foi exactamente o contrário o que Papa quis: a morte é o único drama que une todos os seres humanos, e ele viveu a sua perante todo o mundo. Foi diferente dos seus antecessores até nesta atitude face à morte, reaccionária porque desenterrada de idades antigas, revolucionária porque vanguardista para o nosso tempo. Vinda do Vaticano, paradoxal casa fechada de uma religião evangelizadora e num mundo aberto, a atitude de João Paulo foi inesperada e, colocada no espaço público, ligou-o sem intermediários a milhões em todo o mundo. Não teve vergonha de morrer em público. Adaptou o cerimonial medieval e barroco da sua morte à era da televisão global. A TV cumpriu o espectáculo da boa morte em público, mas a apropriação televisiva da morte de João Paulo II acrescentou-lhe sexta-feira todos os traços da comunicação de massas pró-emotiva em feroz concorrência: pieguice, piroseira, letrinhas abonecadas no ecrã com o nome do papa, títulos semi-piadéticos como “A DEUS”, eleição antes de tempo do próximo Papa, expectativas, o roxo do luto antes da morte, a morte anunciada antes da morte, inventada e depois arrogantemente negada como se fosse um direito dar uma notícia falsa, como se fosse um direito da televisão que o Papa morresse à hora do telejornal. Como ele não morreu, mataram-no. E no sábado, quando morreu, não passou de rodapé do futebol na TVI.

Dias antes, nos EUA, o caso Schiavo já colocara a morte na agenda pública. As sociedades dificilmente discutem conceitos abstractos. Terri Schiavo permitiu um debate generalizado sobre o fim da vida em casos extremos, debate afinal antiquíssimo sobre o que é a boa morte e o que é a má morte, debate que se renova com a mudança das mentalidades perante o passamento. Mas neste caso as imagens disponibilizadas da infeliz criatura constituíram uma vergonhosa tentativa de manipulação da opinião pública. Havendo dezenas de horas de vídeo de Shiavo imóvel e sem expressão, mostraram-se imagens escolhidas cirurgicamente que sugeriam o contrário, ela parecia reagir a estímulos de familiares que pegavam nela. Eram reacções instintivas e não cerebrais. Há muitos anos que o cérebro de Schiavo não tinha qualquer actividade. As imagens “mentiam”, as imagens “mentem”. São incompletas, estão presas à sua própria iconicidade: por estarem tão próximas do que mostram, permitem-nos construir uma realidade mental maior do que a visível.

Cinco dias depois das eleições de Fevereiro, cinco diazinhos depois, a administração da RTP emitiu uma nota de serviço interna – que é, no caso, uma mensagem urbi et orbi – descrevendo não só todo o bem que fez no tempo de mandato, mas, muito mais ainda, descrevendo todos os seus desígnios para os próximos anos. Um autêntico plano quinquenal e eleitoral. Será uma tremenda injustiça se o Governo não apreciar positivamente este documento que lhe é dirigido. A Dois não podia ficar atrás de tal manifestação de intenções e de árduo trabalho e no dia 29 de Março o Diário de Notícias trazia uma notícia extraordinária: o director da Dois anuncia que uma loja maçónica está a negociar para ter um programa no canal público. Trata-se da Grande Loja Regular de Portugal, uma cisão maçónica do PSD que se afastou do Grande Oriente, controlado pelo PS. É extraordinário que Manuel Falcão se apresse a negociar com maçonarias pelo facto de estas terem enorme influência nos dois partidos de governo, que são quem afinal o nomeia ou apeia (Falcão não dorme); e é extraordinário que uma organização clandestina de gestão de empregos públicos e privados, que se afasta da sã convivência legal da sociedade civil democrática, se arrogue e lhe seja concedido o direito de acesso ao tempo de antena público. Uma organização clandestina com direito à imagem! É um total desaforo de Falcão e da referida organização maçónica. Espero que quem manda na Dois ponha imediatamente termo a esta pouca-vergonha.