Eduardo Cintra Torres

SOS no triângulo das Bermudas


As alternativas televisivas aos quatro canais generalistas continuam a aumentar a sua parte de audiência: cabo, vídeo e satélite representam nos primeiros meses do ano 14,0 por cento do total de televisão visto.

Mais de um oitavo do tempo televisivo é dedicado às alternativas. Este ano, o "quinto canal" ultrapassa pela primeira vez os dois por cento da audiência total pelos portugueses: os seus 2,1 por cento de audiência são o triplo da audiência de um dos canais de acesso universal, a Dois (0,7%). Considerando apenas quem tem acesso à alternativa do satélite (residual) ou principalmente do cabo, os números são ainda mais impressivos: 30,2 por cento do tempo de contacto com a TV é dedicado às alternativas - quase metade dos 69,8 por cento do tempo dedicado às generalistas. E as alternativas podem estar subestimadas na audimetria. O Sport TV queixa-se da ínfima presença de lares com acesso a canais da TV Cabo através de parabólica. Este canal tem meio milhão de assinantes, dos quais quase metade (47 por cento) recebem o serviço por satélite: lares e casas comerciais de zonas onde não há redes de cabo, como o interior. Segundo o Sport TV, a sua audiência medida seria superior se o painel de audimetria incluísse assinantes de "cabo por satélite" na mesma proporção da sua presença efectiva nos lares e estabelecimentos. É certo que o painel de audimetria tem vindo a ser aumentado. As alterações permitiram actualizar a audiência dos canais alternativos, mas também favoreceram as generalistas, aumentando o tempo de contacto dos portugueses com os quatro canais. Assim, apesar de perderem share, SIC, TVI e RTP ganharam rating, podendo dormir descansadas com as contas bancárias mais cheias. E quanto a programas? A programação dos generalistas deverá permanecer em 2005 tão afunilada como em 2004, o que acentuará o aumento de audiência do "quinto canal". Estudos mostram que a TV alternativa é um dado adquirido para crianças e jovens. Quantos aos adultos, há hoje programas de cabo, em especial da SIC Notícias e do Spor TV, que conseguem por vezes ultrapassar a audiência dos canais generalistas. Com os canais alternativos em parceria privilegiada com a PT, a SIC criou as mais-valias necessárias para compensar perdas da generalista. A RTP aumentou o número dos seus canais, um dos quais, a RTPN, copiando a SICN. A TVI não arrancou ainda para outros canais por dificuldades na negociação com uma PT quase-monopolista do cabo e que acumula com conteúdos. Mas, seja qual for o empenho dos operadores nos canais temáticos, resta sempre a questão da programação dos seus canais generalistas. Enquanto RTP, SIC e TVI tiverem o monopólio da TV por via terrestre, a atenção à sua programação é de interesse nacional. E aí as expectativas dificilmente podem ser de melhoria, pelo menos dentro do tipo de programação popular que os operadores preferem. A Dois, pelo seu lado, parece paralisada com a doença do sono. Falcão dorme. Como a TV generalista é o que vai sobrando para os grupos sociais menos dinâmicos e exigentes, a programação ser-lhes-á cada vez mais dirigida. É o que já sucede com as telenovelas portuguesas, brasileiras e latino-americanas e com o humor simples ou simplista dos Malucos do Riso, Batanetes, Jika da Lapa e tantos outros programas entre o real e o ficcional da actual febre humorística. Na audiência de um programa popular como Malucos do Riso verifica-se uma forte afinidade (153%) da classe sócio-demográfica mais baixa, adesão que na classe mais alta é metade da expectável (52%). A afinidade da classe mais baixa a uma novela da TVI como Mistura Fina é o dobro (118%) da que se verifica na classe AB (60%). Quando se analisa a afinidade dos grupos de idade a programas de maior audiência, nota-se por exemplo que a adesão dos mais novos (4-14 anos) com Morangos com Açúcar é de 160%, índice que baixa para quase um terço (60%) no grupo etário dos 25 aos 34 anos e sobe para 191% no grupo dos maiores de 65 anos. É na conjugação dos grupos etários mais novo e mais velho e na classe de menos recursos que os generalistas obtêm mais espectadores. Novelas, concursos e programas de vídeo-anedotas como Malucos do Riso ou Batanetes são os géneros que mais garantem o triângulo das Bermudas do share: crianças, velhos e pobres. Essa busca do maior número de espectadores disponíveis explica a programação dos três principais canais e o seu afunilamento. Não é por acaso que a SIC lança agora uns Malucos do Riso interpretado por crianças. A busca do triângulo das Bermudas explica também iniciativas de apoio social e proximidade levadas a cabo pela SIC, quer junto de unidades hospitalares pediátricas quer junto de universidades de terceira idade: são louváveis, mas visam também ancorar audiências de velhos, crianças e pobres. Pode criticar-se as programações dos generalistas por tentarem satisfazer as audiências que lhes estão disponíveis? Todos os grupos têm direito a programas que lhes agradem. Mas pode a programação ser só para esses grupos? Os canais generalistas estão a usar um bem que não é deles, as frequências nacionais, bem que lhes foi cedido para fazerem programação generalista. Ora eles não estão a fornecê-la devidamente. E a tendência - à medida que deixam fugir espectadores dos grupos soció-demográficos mais exigentes - será a que já conhecemos: afunilamento dos géneros e diminuição da exigência. Há anos que a SIC não apresenta uma ficção nacional de qualidade que satisfaça todos os critérios. (Até Amanhã Camaradas é a excepção que confirma a regra; demorou anos a fazer-se e teve de ser super-subsidiada; a SIC fá-la-ia hoje?) A TVI nunca teve ficção nacional de qualidade. A ficção que a RTP tem apresentado ou é tipo telenovela sem nenhum interesse, como O Segredo, ou está centrada num único género (a ficção histórica), com a limitação de ser de um único fornecedor, Francisco Moita Flores, cujas qualidades indesmentíveis são diminuídas por alguma facilitação dos argumentos e uma tendência para a telenovelização. Será por falta de dinheiro? Não é com certeza. Os lucros das empresas da SIC e da TVI aumentaram. A situação financeira da RTP tem melhorado e não falta dinheiro para programas medíocres. Nesta época de passagem da generalista para a temática, estamos afinal numa terra de ninguém: para ter lucros na generalista de velhos, crianças e pobres, já basta assim; para se investir em programação criativa no cabo ainda não há vontade nem uma massa crítica que permita aos operadores ultrapassar o seu atávico medo de arriscar.