Eduardo Cintra Torres

Fragmentos pré-socráticos


Tivemos duas semanas menos ruidosas, em que televisões e outros media, à falta de manchetes políticas, puderam destacar grandes temas sociais que geralmente relegam para tempos mortos ou páginas interiores: ao recuar a onda política, houve lugar para boas reportagens. Com um preço, porém.

O PS conseguiu formar o Governo em silêncio com a complacência dos meios de comunicação: foi uma espécie de pré-estado de graça, que promete um estado de graça semelhante ao que Guterres usufruiu (durante cinco anos!) com os resultados que se viram. Vitorino disse “habituem-se!” e, mais do que habituarem-se, os media obedeceram. O conceito de estado de graça que os media “concedem” aos novos governos é uma perversão total da missão do jornalismo. A missão dos media é procurar a informação, mesmo esbarrando em paredes de silêncio. Os media não têm que “decidir” se deve haver estado de graça, isto é, não têm que tomar decisões políticas sobrepostas à missão informativa. Os media têm que informar, ponto final. O estado de graça deve ter sido inventado por um governo qualquer e os media andam a praticá-lo ou por inércia não reflectida ou porque realmente alinham com os governos e outras instituições. Não pode ser por razões de ética jornalística.

Que nos reserva o novo Governo na comunicação social? Intervenção. O passado do PS no Governo e o passado dos outros governos não permite outra resposta. O Governo mexerá com toda a certeza na RTP e colocará pessoas da sua confiança. Tentará colocar gente sua na informação da RTP, se por acaso não foram suficientes os sinais pró-PS que foram sendo dados desde que as sondagens começaram a dar uma expressiva vitória a este partido. O mesmo na RDP e na Lusa. E não só. As análises à venda da Lusomundo Media pareceram-me muito incompletas. Razão teve a Prisa em achar o processo esquisito. O processo parece ter sido feito para o BES/Governo continuarem a pairar sobre os principais media do grupo. Para quê vender, então? Porque a empresa ficou totalmente descredibilizada pela ligação ao poder político com a intervenção do Governo Santana Lopes e com o intervencionismo delirante de Luís Delgado e Bettencourt Resendes no Diário de Notícias (DN), que vende hoje menos do que nunca. Já antes a Lusomundo Media mantinha sempre uma relação com o poder político, através da ligação histórica da PT (e do BES) ao Governo. Depois do processo atribulado no DN, o presidente da PT encontrou-se com o novo líder do PS, então um partido minoritário no parlamento. Onde? Na sede da PT ou num lugar neutro? Não, o encontro realizou-se na sede do PS no Largo do Rato. O que se seguiu no processo Lusomundo não foi certamente feito contra o PS. Até que ponto a venda da Lusomundo Media foi uma decisão independente da PT? Este processo parece afastar um pouco mais o DN e os outros media do grupo da influência governativa, mas não totalmente. É bem provável, também, que o grupo se livre de Luís Delgado, essa fraude gestora e comentadora, e até de Bettencourt Resendes, pelo seu comportamento dos últimos meses e ligação a Delgado. Mas a venda pela PT, dominada pelo grupo Espírito Santo e com ligação ao Estado, à Olivedesportos (por decisão do grupo Espírito Santo com provável benção do PS) não deixa de significar uma ligação ao poder político, embora atenuada. O Banco Espírito Santo é a mais antiga instituição do poder político em Portugal. Desde os anos 20 do século passado até 2005, o Espírito Santo sempre esteve orientado para o poder político ou ligado ao poder político ou no poder político (excepto durante alguns meses do gonçalvismo; mas isso foi apenas porque o gonçalvismo durou pouco). Seria interessante algum trabalho académico que fizesse uma genealogia dos ministros com ligações ao BES desde essa altura até ao Governo que agora toma posse. Em consequência, é verosímil que o próximo Governo possa continuar a salpicar influências e exercer pressões no DN, no Jornal de Notícias (JN), na TSF e até, quem sabe, no 24 Horas, como fez o governo Santana Lopes (a sua pressão conseguiu mudar o tom das manchetes). A venda pela PT-BES da Lusomundo a Joaquim Oliveira e a evolução política em direcção à vitória do PS de Sócrates nestas eleições constituem, assim, uma feliz coincidência no triângulo interesses económicos-media-Governo. A consciencialização da opinião pública e a maior abertura dos media às notícias sobre os media tornam actualmente mais difícil a intervenção sem custos políticos na área mediática. A queda do Governo Santana Lopes é nisso exemplar. Mas o PS, com a legitimidade parlamentar da maioria absoluta que Lopes lhe ofereceu, não deixará de intervir. É uma inevitabilidade. Veremos como reagem a isso os meios mediáticos que oferecem estados de graça a alguns governos.

O núcleo de influentes junto de Sócrates na área televisiva dá vontade de emigrar: Emídio Rangel, movido por um espírito de vingança pela interrupção do seu reinado na RTP; José Manuel Nunes, o Richelieu da RDP até à chegada do Governo Barroso; e Arons de Carvalho, o grande Arons de Carvalho dos governos Guterres. Não sabemos ainda até que ponto Sócrates porá as amizades acima dos interesses nacionais, como fazia o seu antecessor, mas nestas coisas não há que ter muita esperança. A política de Estado é muitas vezes feita com base em amizades pessoais. O (des)governo de Lopes teve muito a ver com isso. No auge das trapalhadas lopistas, cheguei a ouvir Carlos Magno, Luís Osório e outros comentadores elogiarem o facto de Lopes tomar decisões políticas de acordo com as suas amizades pessoais. “Só lhe fica bem”, disse Magno na Antena 1. Esta promiscuidade consentida pelos media entre amizade e Estado, entre interesses pessoais e interesses colectivos, dá os piores resultados para a boa governação. A primeira coisa que Salazar fez quando finalmente conseguiu ser nomeado chefe do Governo foi visitar Cerejeira para lhe dizer que deixava de poder ser amigo dele. Nas quatro décadas seguintes não teve amigos e despediu os ministros com um bilhetinho. O ditador não confundia os interesses pessoais com os interesses do regime, apesar de ser o seu regime. Este é um caso extremo, mas a sobreposição das amizades pessoais, seja por Santana Lopes, seja por Sócrates, é o extremo oposto. Veremos se Sócrates é o homem de Estado que os comentadores deste fim-de-semana já prometem ou se vai buscar os amigos para injectar nos órgãos de comunicação públicos para neles intervirem nomeando amigos incompetentes e influenciando o tom das notícias.