Eduardo Cintra Torres

Bem me quero, mal me querem


Uma noite dedicada a Lisboa, o ARTE apresentou, em 9/7/2004, o documentário de Catarina Mourão “Lisbonne – Grandir sous un ciel inconstant” (ARTE France, Agat Films, Filmes do Tejo, França, 2003).

O filme procurava retratar uma Lisboa contemporânea diferente do que era há 20 anos, fazendo de três jovens as personagens simbólicas dessa mudança. Vi o documentário na altura e não me entusiasmou. Havia demasiados lugares-comuns ideológicos – o jovem trabalhador, o jovem sonhador, a jovem lutadora de causas – e visuais: o Tejo, “oh, le Tage!, les tramways jaunes, le 25 avril, révolution des oeillets”... Agora a RTP1 apresentou outro filme de Catarina Mourão, e bem invulgar: o tema do segundo documentário é o primeiro. Chamou-lhe “Malmequer/ Bem me Quer – Diário de Uma Encomenda”. A autora conta a experiência de realização do filme anterior, encomendado pelo ARTE. As palavras e as imagens dum túnel sem fim não enganam: fazer o filme de encomenda foi um pesadelo. Os encomendadores tinham nas suas cabeças uma juventude e uma Lisboa diferentes da que Mourão queria mostrar. Por razões que não explica, acabou por fazer o documentário que os produtores queriam. A forma como a autora apresenta o caso tende a diabolizar encomendadores e encomenda, apresentada como incompatível com o “cinema de autor”. Para o primeiro documentário, diz, havia o dinheiro dos outros e as ideias dos outros; para o segundo não havia dinheiro mas havia a sua autonomia autoral. Sendo o documentário bastante explicativo a respeito das relações com os encomendadores sem rosto – esse é um fio condutor da narrativa –, Mourão não indica, porém, se poderia ter feito valer o seu ponto de vista. Afinal, ela era a realizadora. O documentário alimenta propositadamente a mitologia do cinema de autor incompreendido: a autora teve uma encomenda, a primeira, e não gostou. Isto não faz do segundo documentário um pior objecto do que o primeiro. Pelo contrário, é mais interessante. Usando o mesmo material fílmico, Mourão retoma as personagens, mas acrescenta-lhes duas novas, um casal, ele com 20 anos e terminando o secundário, ela, de 26, empregada e grávida. O casal ficou de fora do primeiro documentário porque os encomendadores acharam que não se enquadrava na sua ideia da Lisboa do bilhete postal com Tejo & elevador da Bica. O segundo documentário é o “bem-me-quer” do título, o primeiro, a obra de encomenda, é o “malmequer”. Mourão liberta-se do “pesadelo” e mostra agora melhor o seu ponto de vista sobre uma juventude lisboeta como a de outras cidades cosmopolitas. Ao mesmo tempo, entrança nessas estórias a narrativa de si mesma como autora e da sua experiência negativa com a encomenda. Este segundo filme desdobra-se na recuperação da “verdade” da autora sobre a juventude lisboeta e na condenação do sistema da encomenda pela denúncia do seu caso concreto (o que poderá ser avaliado eticamente, pois ela não ouve a outra parte). A reflexão sobre a sua própria condição de criadora é o aspecto mais interessante de “Malmequer/ Bem Me Quer”. Pode dizer-se que há sempre na arte uma auto-reflexão, mas não nos termos deste documentário, em que a reflexão se expõe, por assim dizer, documentalmente, através do Eu, sem sublimação. Mourão ultrapassa o seu pesadelo de criadora ofendida pelo sistema da encomenda através de um reviver da experiência pessoal e não através de uma sublimação artística “exterior” ao seu problema pessoalizado. Estamos, neste domínio, no âmbito de uma nova maneira de fazer cinema documental: o Eu como sujeito e como objecto. O Eu do cineasta, bem entendido. Esse surgimento é patente nos documentários-sitcoms de Michael Moore, personagem de si mesmo. Também “Outfoxed” se constrói sobre os seus personagens “reais”, incluindo o realizador Robert Greenwald, para denunciar o canal de TV Fox, de Rupert Murdoch. Há também o documentário “Super Size Me”, contra a cadeia de comida rápida McDonalds, em que se alimenta literalmente o Eu do autor: Morgan Spurlock faz de si mesmo cobaia visual, alimentando-se em excesso com comida Mcdonalds para poder denunciá-la. O Eu (“me”) do autor chegou ao título, tal como o duplo “me” de “Malmequer/ Bem Me quer” . E há ainda Tarnation, filme de Jonathan Caouette, que se fixa no Eu “real” do realizador: “A tua maior obra de arte é a tua própria vida”, diz o “slogan”. Outros documentaristas europeus optaram por narrar as suas próprias experiências ou casos vividos. O Instituto Franco-Português apresenta um pequeno ciclo com o expressivo título “Família, Odeio-te!”, que começou com “A Marca Vermelha”, de Delphine de Blic. Os dois próximos documentários são “Fleurette”, de Sérgio Tréfaut (07/03), e “História de Um Segredo”, de Mariana Otero (14/03). Os três filmes dizem respeito às mães dos respectivos realizadores e à relação deles com elas. Num outro nível, mais superficial, nota-se como o Eu já invadiu também os próprios teledocumentários sobre a vida selvagem. Não raro ficamos a saber mais sobre as emoções dos “apresentadores” dos tigres e cobras do que sobre os próprios bichos. E, a outro nível ainda, temos a avassaladora exposição do Eu na televisão, “media” que lhe é tão receptivo. Cada vez mais programas, como os “talk-shows” confessionais, exploram essa urgência das pessoas em falarem de si para o mais amplo auditório possível. O êxito do “reality show” como género deve-se à sua inscrição nesta tendência psico-social. Não comparo valores estéticos ou documentais de filmes como os referidos com os de “reality shows”. Apenas anoto a sua inscrição na mesma tendência da sociedade actual, proporcionada pelo milagre da multiplicação dos “media” e da universalidade de acesso a eles. Há tempo e audiência disponíveis para os indivíduos se exporem, fazendo a catarse através dos “media”. Catarina Mourão fez a sua catarse, artística e artisticamente, no espaço público.

A leitora Carina Infante do Carmo escreveu nova carta ao director (19/02) para rebater o meu esclarecimento acerca da crítica à série televisiva Até Amanhã Camaradas. Confirma que o romance de Cunhal foi escrito muito antes do 25 de Abril (1949-61) e lido em cópia ou cópias dactiloscritas no interior do PCP. Na primeira carta a leitora conseguiu desmentir o que não escrevi (“Ao contrário do que não escreveu...”) e nesta segunda carta confirma com factos o que escrevi – para logo me desmentir e diminuir. É o chamado estilo pseudo-argumentivo. Terminando com insuportável paternalismo, tem a presunção de que ignoro completamente as dificuldades da vida clandestina e a inexistência do e-mail e da fotocopiadora nos tempos da clandestinidade! É presunção a mais, para a qual não tenho mais resposta.