Eduardo Cintra Torres

Manual do Militante e Epopeia do PCP


O romance "Até Amanhã, Camaradas", de Manuel Tiago, pseudónimo de Álvaro Cunhal, é antes do mais um documento histórico. Relata a vida interna do PCP nos anos difíceis da Segunda Guerra Mundial, em torno das lutas populares que organizou no vale do Tejo em 1944.

Retrata a realidade pelos olhos de um interveniente nos acontecimentos, depois secretário-geral do PCP, urdindo capazmente uma teia de personagens numa trama colectiva com inúmeros episódios.

É por esse lado que o primeiro romance de Cunhal cativa como texto transponível para o ecrã. Apesar do estilo desinteressante e "kitsch", Cunhal construiu uma narrativa credível. Manejou as personagens do mesmo modo que, como secretário-geral, dominou a estrutura de alto a baixo do partido. O romance é um organograma em movimento.

O êxito do livro é em parte consequência do êxito político do PCP. Sobrevivendo ao fascismo e às cisões, o PCP chegou até hoje, reclamando para si muita da oposição ocorrida em décadas de fascismo. Sem o diminuir, pode dizer-se que esse palmarés é exagerado. Além das pequenas oposições "burguesa", republicana, maçónica ou católica, houve um importante movimento à esquerda do PCP a partir dos anos 60. E houve, também, um forte movimento anarquista até aos anos 30, hoje quase ignorado histórica e até literariamente.

O silêncio que cobre as outras oposições estende-se por osmose a ficções igualmente importantes enquanto documentos históricos e melhores literariamente do que "Até Amanhã, Camaradas", como "O Arcanjo Negro", de Aquilino Ribeiro, "A Lã e a Neve", de Ferreira de Castro, e outras páginas de ficção atravessada pela política em Rodrigues Miguéis, Paço d'Arcos, Branquinho da Fonseca, Manuel da Fonseca, Torga, Sena e outros.

Esse passado histórico e esses romances apagam-se na memória e os romances de Cunhal sobrepõem-se-lhes porque, ao contrário do que se costuma ler ou dizer, Cunhal é um vencedor da História. Se tivesse desaparecido do palco, "Até Amanhã, Camaradas" seria apenas fonte histórica especializada.

Antes de passar à série televisiva co-produzida pela SIC (28 e 29/01), convém situar "Até Amanhã, Camaradas". Trata-se de um livro singular. O protagonista é colectivo e chama-se "PCP". A narrativa centra-se nos militantes clandestinos e nos seus problemas políticos, pessoais e de segurança. Como se comportam se passam à clandestinidade? Como vivem nas "casas de apoio"? Como se portam se são presos?

Outro tema central é a (re)organização do PCP. Quais as preocupações dos clandestinos na ligação entre as estruturas de base, as intermédias e o Comité Central? Quais os tipos de militantes que se encontram? Os que falam e não fazem nada, os problemáticos, os voluntaristas, os totalmente dedicados à causa? Quais as tarefas importantes? Distribuir a imprensa? Participar nas reuniões? Organizar greves? Como fazer o PCP crescer, que é o objectivo principal?

A trama narrativa serve para responder a estas questões. Quem julga que "Até Amanhã, Camaradas" é um romance sobre lutas populares engana-se redondamente. Cunhal escreveu um romance sobre o PCP e para o PCP. É uma espécie de manual de clandestinidade para os seus camaradas aprenderem as regras internas do partido. Em vez de textos maçudos para "O Militante", o jornal interno do PCP, Cunhal forneceu-lhes uma estória escorreita e até empolgante, povoada de dirigentes e militantes de base em acção.

A estrutura do romance, que a série da SIC muito bem reproduziu, revela o quanto este é um livro sobre o PCP. As fases da narrativa são as três da intriga mínima: a) situação inicial estável de sobrevivência do partido e aproveitamento das privações de operários e camponeses; o PCP procura reforçar-se capitalizando o descontentamento popular; b) na parte central do romance, o PCP lidera greves e manifestações que apanham as autoridades desprevenidas: é um sucesso político do PCP, mas logo seguido de brutal repressão; c) a este estado de desequilíbrio seguem-se o esforço e corroboração da reorganização do PCP, levada a bom termo, regressando-se a um estado semelhante ao inicial, mas melhor para o PCP segundo a versão de Cunhal. "Happy end".

Na estrutura e na narrativa, as lutas populares são pretexto para o PCP se fortalecer e para se provar que a reorganização de Cunhal era correcta. Os métodos conspirativos e clandestinos e a nova estrutura organizacional são legitimados e explicados minuciosamente. As massas populares são tão-só um pano de fundo de parte do romance, com pouco interesse. Em "Até Amanhã, Camaradas", o povo serve para validar o PCP e serve para o PCP regressar reforçado da repressão e da reorganização.

"Até Amanhã, Camaradas" não é um elogio da personagem colectiva povo ou operários e camponeses unidos. É um elogio e um manual do PCP e do "centralismo democrático", isto é, das regras internas que ainda hoje governam o partido de Cunhal.

Romance de tese, didáctico e escrito num estilo realista apagado, usa a potencialidade com que o género romance mostra um mundo amplo e concreto para transmitir em narrativa a ideologia e instruções do seu autor.

Mas "Até Amanhã, Camaradas" tornou-se também, com o tempo, uma epopeia do PCP, o passado épico absoluto do partido, um grande fresco narrativo com inúmeros heróis entre o humano e o divino agindo numa polifonia romanesca que conduz sempre ao objectivo de elucidar militantes e promover o "centralismo democrático".

Se o protagonista do romance é o PCP, as três personagens secundárias dominantes são Vaz, Ramos e Maria. Vaz é o militante profissional totalmente dedicado ao partido, sem tempo a perder com a alegria de viver. Ramos é igual, mas com a alegria que falta a Vaz. O lado austero e monomaníaco, quase maquinal, de Vaz tem levado a escrever-se que se trata de um "alter ego" de Cunhal. Mas poderá ver-se também em Ramos outra projecção de Cunhal, um "self" que o Cunhal real quereria igualmente mostrar mas não poderia por achá-lo incompatível com a sua política. (Continua. Até amanhã, leitores.)