Eduardo Cintra Torres

A Nossa Europa Passa por Auschwitz


A televisão portuguesa deu bastante atenção ao 60º aniversário do encerramento do campo de concentração de Auschwitz, na Polónia. Mais, pelo menos, do que às comemorações do desembarque na Normandia em 2004. A atenção justificou-se plenamente pelo significado que representa para a história da Europa e da humanidade a industrialização da morte pelo regime nazi.

Os noticiários deram plena conta da efeméride. O corresponde da SIC em Israel e Palestina fez uma reportagem sobre o "último caçador" de nazis acusados de genocídio. E a TVI encontrou um sobrevivente de Auschwitz no Algarve, que referiu ter conhecido dois portugueses no campo da morte (seriam mesmo portugueses? Quem seriam? Terão sobrevivido? A TVI não seguiu a pista de investigação). SICN e Dois fizeram debates interessantes com especialistas, tendo o da Dois reunido pessoas com posições divergentes, o que é salutar num tema difícil como o do holocausto.

A RTP1 transmitiu à uma da manhã um documentário que partia de fotos aéreas de Auschwitz colhidas por aviões aliados e que foram ignoradas enquanto fonte de informação sobre o campo. Daí partia para o que podemos chamar de europeização da culpa: os Aliados tinham indícios ou fontes confirmando Auschwitz como cemitério em massa de judeus e de outros inocentes e opositores do regime nazi e nada fizeram. Convenhamos: nada, para além de derrubarem o nazismo à custa de sangue, suor e lágrimas. A este excelente documentário a Dois acrescentou na sexta-feira um outro documento único, centrado no terrível binómio Auschwitz-música: pela primeira vez em 60 anos, autorizou-se música nos locais onde mais de um milhão de pessoas foram gaseadas e incineradas. Sobreviventes que ali tocaram Bach, Mozart e Chopin para os responsáveis do holocausto recordaram a custo a irracionalidade desse binómio, a beleza da música e o horror que a rodeava.

Mas a televisão portuguesa desprezou a cerimónia de quinta-feira à tarde em Auschwitz. É certo que a RTP1 mostrou um pedacinho em directo, mais para promover o documentário dessa noite do que para mostrar o próprio acontecimento. A atenção logo se transferiu para o "talk-show" Portugal no Coração. E a Dois só mostrou a primeira parte do evento em directo porque isso fazia parte da sua retransmissão diária àquela hora do Euronews. A SICN e a RTPN não mostraram a cerimónia em directo. Todos os noticiários do dia mostraram extractos, mas nenhum a acompanhou ao vivo. É uma atitude estranha e que deve ser interrogada: por que razão a TV portuguesa, cada vez mais inclinada a transformar o seu fluxo numa fonte de "eventos" não foi capaz de se ligar e de nos ligar a este extraordinário acontecimento? Por que razão a cerimónia foi transmitida em directo na TV5, no Euronews, na CNN, na Sky News, na BBC World e tantos canais nacionais europeus, e em Portugal nem mesmo os dois canais dedicados à informação (SICN e RTPN) a retransmitiram?

As muitas referências noticiosas em todos os canais portugueses não substituem a ausência do directo. O que aconteceu em Auschwitz na quinta-feira foi um verdadeiro evento, uma verdadeira cerimónia televisiva. Quer dizer, um evento integral, para ser vivido, evento formal, simbólico, representando comunidades (poder e povo), neste caso representando todo o mundo europeu e envolvido na Segunda Guerra Mundial. Ali estiveram mais de uma dezena de chefes de Estado, entre os quais os da Rússia, França, Polónia, Ucrânia, Alemanha, Luxemburgo, Holanda, Bélgica, e outros, como o vice-presidente do Estados Unidos e até representantes da Grécia e Chipre. Estiveram - porventura reunidos pela última vez - muitos sobreviventes do campo. Estiveram e participaram representantes de várias religiões e comunidades.

Como qualquer cerimónia em directo, esta estava sujeita ao imprevisto: neste caso, a neve e o frio que castigaram as centenas de pessoas que participaram e assistiram, mais de três horas ao ar livre, aos discursos de estadistas, dirigentes religiosos e sobreviventes do holocausto. O evento terminou com actos simbólicos, como a deposição de uma vela por cada representante nacional presente (Putin, Chirac, Cheney, etc.), com um momento musical de profunda espiritualidade quando já a noite caíra em Auschwitz, e, finalmente, com a transformação dos carris do comboio que transportou mais de um milhão de pessoas para a morte em duas linhas de fogo, simbolizando o fogo que as consumiu nos crematórios dos nazis.

Os velhos sobreviventes de Auschwitz e de outros campos de morte, todos com 80 anos ou mais, puderam suportar a neve e o frio durante as longas horas de uma cerimónia extraordinária - austera, emotivamente controlada, carregada de simbolismos antigos e actuais. Mas, para a televisão portuguesa, os espectadores não conseguiriam aguentar a transmissão nos seus sofás, cadeiras, lares ou locais de trabalho.

Terão os programadores ao menos sentido o dilema de transmitir ou não transmitir? Ou os eventos valem já todos mais pelo "rating" e "share" do que pelo conteúdo? Seja como for, é escusado transferir para a televisão, como se faz tanta vez, toda a responsabilidade do que não nos agrada no país. Se a televisão é um espelho, é porque nos mostra a nós mesmos.

À hora em que uma dúzia de chefes de Estado europeus fazia justiça a um terrível passado europeu e aguentava quatro horas sob temperaturas negativas em Auschwitz, ali onde o "frio polar" não é um "slogan" dos noticiários televisivos, no salão aquecido do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal o nosso Pesidente da República perorava a respeito da reforma da Justiça (que novidade!), o ministro da Justiça, em nome do primeiro-ministro, reafirmava a necessidade da reforma da justiça (que coragem!), o procurador-geral da República clamava pela reforma da justiça (ora bem!) o bastonário da Ordem dos Advogados estreava-se em cerimónias exigindo a reforma da justiça (agora é que é, caramba!) e o representante do Supremo Tribunal de Justiça metaforizava sobre a reforma da justiça (e ela já vem a caminho!).

Trata-se de uma questão da cultura nacional. Portugal esquivou-se da guerra europeia, Portugal esquiva-se da memória. É a não-inscrição de que fala José Gil. Portugal ainda não quer fazer parte desta Europa política que tem passado, bom, mau ou terrível, mas que tem passado e que tem memória. Portugal, da Europa, só quer saber dos empregos e dos salários e dos subsídios. Não assumimos que a nossa Europa passa menos pelos subsídios de Bruxelas do que pela consciência do horror de Auschwitz. Por isso estamos na cauda dessa mesma Europa.