Eduardo
Cintra Torres
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A Nossa Europa Passa por Auschwitz |
Os noticiários deram plena conta da efeméride. O corresponde da SIC em Israel e Palestina fez uma reportagem sobre o "último caçador" de nazis acusados de genocídio. E a TVI encontrou um sobrevivente de Auschwitz no Algarve, que referiu ter conhecido dois portugueses no campo da morte (seriam mesmo portugueses? Quem seriam? Terão sobrevivido? A TVI não seguiu a pista de investigação). SICN e Dois fizeram debates interessantes com especialistas, tendo o da Dois reunido pessoas com posições divergentes, o que é salutar num tema difícil como o do holocausto. A RTP1 transmitiu à uma da manhã um documentário que partia de fotos aéreas de Auschwitz colhidas por aviões aliados e que foram ignoradas enquanto fonte de informação sobre o campo. Daí partia para o que podemos chamar de europeização da culpa: os Aliados tinham indícios ou fontes confirmando Auschwitz como cemitério em massa de judeus e de outros inocentes e opositores do regime nazi e nada fizeram. Convenhamos: nada, para além de derrubarem o nazismo à custa de sangue, suor e lágrimas. A este excelente documentário a Dois acrescentou na sexta-feira um outro documento único, centrado no terrível binómio Auschwitz-música: pela primeira vez em 60 anos, autorizou-se música nos locais onde mais de um milhão de pessoas foram gaseadas e incineradas. Sobreviventes que ali tocaram Bach, Mozart e Chopin para os responsáveis do holocausto recordaram a custo a irracionalidade desse binómio, a beleza da música e o horror que a rodeava. Mas a televisão portuguesa desprezou a cerimónia de quinta-feira à tarde em Auschwitz. É certo que a RTP1 mostrou um pedacinho em directo, mais para promover o documentário dessa noite do que para mostrar o próprio acontecimento. A atenção logo se transferiu para o "talk-show" Portugal no Coração. E a Dois só mostrou a primeira parte do evento em directo porque isso fazia parte da sua retransmissão diária àquela hora do Euronews. A SICN e a RTPN não mostraram a cerimónia em directo. Todos os noticiários do dia mostraram extractos, mas nenhum a acompanhou ao vivo. É uma atitude estranha e que deve ser interrogada: por que razão a TV portuguesa, cada vez mais inclinada a transformar o seu fluxo numa fonte de "eventos" não foi capaz de se ligar e de nos ligar a este extraordinário acontecimento? Por que razão a cerimónia foi transmitida em directo na TV5, no Euronews, na CNN, na Sky News, na BBC World e tantos canais nacionais europeus, e em Portugal nem mesmo os dois canais dedicados à informação (SICN e RTPN) a retransmitiram? As muitas referências noticiosas em todos os canais portugueses não substituem a ausência do directo. O que aconteceu em Auschwitz na quinta-feira foi um verdadeiro evento, uma verdadeira cerimónia televisiva. Quer dizer, um evento integral, para ser vivido, evento formal, simbólico, representando comunidades (poder e povo), neste caso representando todo o mundo europeu e envolvido na Segunda Guerra Mundial. Ali estiveram mais de uma dezena de chefes de Estado, entre os quais os da Rússia, França, Polónia, Ucrânia, Alemanha, Luxemburgo, Holanda, Bélgica, e outros, como o vice-presidente do Estados Unidos e até representantes da Grécia e Chipre. Estiveram - porventura reunidos pela última vez - muitos sobreviventes do campo. Estiveram e participaram representantes de várias religiões e comunidades. Como qualquer cerimónia em directo, esta estava sujeita ao imprevisto: neste caso, a neve e o frio que castigaram as centenas de pessoas que participaram e assistiram, mais de três horas ao ar livre, aos discursos de estadistas, dirigentes religiosos e sobreviventes do holocausto. O evento terminou com actos simbólicos, como a deposição de uma vela por cada representante nacional presente (Putin, Chirac, Cheney, etc.), com um momento musical de profunda espiritualidade quando já a noite caíra em Auschwitz, e, finalmente, com a transformação dos carris do comboio que transportou mais de um milhão de pessoas para a morte em duas linhas de fogo, simbolizando o fogo que as consumiu nos crematórios dos nazis. Os velhos sobreviventes de Auschwitz e de outros campos de morte, todos com 80 anos ou mais, puderam suportar a neve e o frio durante as longas horas de uma cerimónia extraordinária - austera, emotivamente controlada, carregada de simbolismos antigos e actuais. Mas, para a televisão portuguesa, os espectadores não conseguiriam aguentar a transmissão nos seus sofás, cadeiras, lares ou locais de trabalho. Terão os programadores ao menos sentido o dilema de transmitir ou não transmitir? Ou os eventos valem já todos mais pelo "rating" e "share" do que pelo conteúdo? Seja como for, é escusado transferir para a televisão, como se faz tanta vez, toda a responsabilidade do que não nos agrada no país. Se a televisão é um espelho, é porque nos mostra a nós mesmos. À hora em que uma dúzia de chefes de Estado europeus fazia justiça a um terrível passado europeu e aguentava quatro horas sob temperaturas negativas em Auschwitz, ali onde o "frio polar" não é um "slogan" dos noticiários televisivos, no salão aquecido do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal o nosso Pesidente da República perorava a respeito da reforma da Justiça (que novidade!), o ministro da Justiça, em nome do primeiro-ministro, reafirmava a necessidade da reforma da justiça (que coragem!), o procurador-geral da República clamava pela reforma da justiça (ora bem!) o bastonário da Ordem dos Advogados estreava-se em cerimónias exigindo a reforma da justiça (agora é que é, caramba!) e o representante do Supremo Tribunal de Justiça metaforizava sobre a reforma da justiça (e ela já vem a caminho!). Trata-se de uma questão da cultura nacional. Portugal esquivou-se da guerra europeia, Portugal esquiva-se da memória. É a não-inscrição de que fala José Gil. Portugal ainda não quer fazer parte desta Europa política que tem passado, bom, mau ou terrível, mas que tem passado e que tem memória. Portugal, da Europa, só quer saber dos empregos e dos salários e dos subsídios. Não assumimos que a nossa Europa passa menos pelos subsídios de Bruxelas do que pela consciência do horror de Auschwitz. Por isso estamos na cauda dessa mesma Europa. |