Eduardo
Cintra Torres
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Portugal, Hoje: o Medo de Mudar |
José Gil recusa essa classificação de estudo de "carácter" para o seu livro e situa "Portugal Hoje: O Medo de Existir" (Relógio d'Água, 2004) no âmbito dos estudos das "mentalidades", desde há décadas um dos grandes contributos dos historiadores para as ciências humanas e sociais. Trata-se de uma interessante reflexão sobre os bloqueios ao desenvolvimento geral do país, nomeadamente para a libertação da "mentalidade" e dos comportamentos cívicos comuns há muito enraizados noutras sociedades ocidentais. Baseado em pressupostos analíticos, este ensaio é também um panfleto impressionista que se junta a inúmeros sinais de crescente incomodidade pública com o nosso "sistema", incluindo o regime político-constitucional. As elites não partidárias manifestam-se crescentemente contra o beco para onde a constituição e o "sistema" empurram o país, conforme se viu mais um exemplo na genuína atitude e contundentes afirmações do empresário João Pereira Coutinho na "Grande Entrevista" (RTP1, 13/01). Apesar de terminado já em plena governação de "descaramento político" de Santana Lopes, não há razão para José Gil ignorar que José Sócrates é gémeo de Santana Lopes na sua ontologia mediática e na inclusão no "sistema". Pelo contrário, é precisamente a convicção generalizada de eles formarem uma dupla, a que já chamei aqui "S&S" ou "Dupond & Dupont", que motiva a angústia do beco, a descrença na alternância política. Não por acaso, "O Medo de Existir" começa e acaba na televisão e nos "media". Começa com a referência a uma característica dos noticiários há muito estudada: a da estrutura cujo fim é invariavelmente um "fait-divers" garantindo aos espectadores a certeza de que a vida continua para além das catástrofes e tristezas dos noticiários. Exemplificando com a notícia do nascimento de um panda num zoo, José Gil chama a este final anedótico "o golpe do panda". Parte da estrutura dos noticiários televisivos em todo o mundo, o "golpe do panda" é, porém, verbalizado por José Rodrigues dos Santos ao usar a frase de fecho "É a vida", que Gil define como "gorda e pretensiosa". Este arranque do ensaio de José Gil não é nada fecundo, porque o "golpe do panda" de Rodrigues dos Santos inscreve-se na "mentalidade" nacional apenas por ser uma versão "kitsch" do estilo excessivo caracterizador da TV em geral. Definindo Portugal como "o país da não-inscrição", onde nada se inscreve "na história ou na existência individual, na vida social ou no plano artístico" e "as consciências vivem no nevoeiro", José Gil pode então recorrer com frequência à realidade mediática portuguesa como exemplo da superficialidade, do estar-se sempre "entre-dois" sem se inscrever verdadeiramente num espaço definido (noticioso ou outro). Afirma: o espaço público não existe em Portugal, os "media" substituem-no. E continua: "não há debate político" em Portugal e até a televisão cria nesse domínio um "espaço artificial" marcado sempre pelas mesmas pessoas e pelos mesmos temas. Quer dizer: o debate não debate o fulcro da questão, que é o "sistema", o bloqueio. O discurso dos "media" sobre o discurso político tem por função confirmar as políticas dos políticos e não debatê-las (mas nisto, poderia acrescentar-se, não se distingue do "espaço público" televisivo de muitos países com espaço público...). Conclui Gil: "Os lugares, tempos, dispositivos mediáticos e pessoas formam um pequeno sistema estático que trabalha afanosamente para a sua manutenção." Eis-nos, pois, confrontados finalmente no livro com a palavra "sistema". O retrato demolidor que Gil traça da sociedade portuguesa não se limita aos políticos e aos "media", abarcando também a administração, os meios e criadores culturais, o povo em geral e a Crítica, que não sai do "fundo dos espíritos" para iluminar os seus leitores e receia colocar-se, como deveria, entre a obra e o público. Gil afirma que, ao ficarem "entre-dois", ao criarem um simulacro de espaço público, os "media" não permitem a eclosão do "real quotidiano" nas pessoas, a sua inscrição nas vidas, pelo que as coisas passam sem nos marcarem. O acontecimento é tratado como algo "para se comunicar" e "não para eclodir no curso da minha vida". E, como a fala existe num plano de não-inscrição, o mais que se ouve e lê é "o esvaziamento da palavra". O esvaziamento do espírito e da palavra é falsamente compensado pelo que tenho apelidado de "eventificação" televisiva: "enquanto tudo se vai desmoronando no interior de nós, vamos dançando no palco televisivo e no espaço mediático dos grandes feitos (desde Lisboa-capital da cultura ao prémio Nobel e ao Euro 2004)". Este retrato de Portugal termina com a reafirmação de que "o exercício do poder político, nas sociedade mediocráticas, passa pelo controlo dos 'media'" e de que a carreira de muitos políticos só terá êxito, "mesmo dentro dos partidos políticos, através dos meios de comunicação social". Este doloroso retrato do país é habitual; partilham-no elites e povo; mas é exagerado, como o próprio dá a entender. Não vale a pena Gil manter-se no plano do analista e recusar o epíteto de pessimista, porque um português que fala numa colectiva "recusa do enfrentamento" - e portanto da extrema dificuldade em romper-se o sistema - tem necessariamente de se inscrever no crescente e difuso grupo duns novos "vencidos da vida", que, feita a análise do "sistema" e interiorizada a incapacidade de o mudar (o que um optimista como o empresário João Pereira Coutinho não aceita), procuram formas de fazer a catarse anti-suicídio: seja na literatura, na filosofia, na gastronomia, no lazer, e, por que não, na crítica. Mas José Gil não está apenas, como analista, fora deste retrato. O seu pessimismo histórico põe-no dentro e é, também ele, uma forma do "medo de existir" e de justificação da inacção. É o intelectual como observador não-participante e, já agora, como telespectador - impressionado, impressionista e impressionante. |