Eduardo Cintra Torres

Décadas da Ásia


No domingo, 27 de Dezembro, já a Sky News e em especial a BBC World alertavam para a dimensão da tragédia asiática e ainda as nossas televisões limpavam as ramelas dos olhos. Depois, recuperaram. Grandes tragédias dão telejornais grandes.

A tragédia televisiva do tsunami é a primeira em que todo o material visual inicial foi feito por amadores com telemóveis audiovisuais, câmaras de vídeo ou fotos digitais e "laptops" com acesso à internet por satélite ou "modem". No primeiro dia não houve repórteres, houve fotos de turistas e blogues.

Há menos de 20 anos, um terramoto matou dezenas de milhares de arménios; sem imagens, a televisão passou-lhe ao lado. Hoje as imagens chegam primeiro que as notícias, chegam "cá" primeiro do que embaixadores e enviados especiais "lá". Ainda bem que houve imagens de turistas, porque a tragédia é o que se vê, não o que é. Metade do mundo não se ralava com a outra metade sem as impressionantes imagens tremidas captadas pelos turistas.

As TV portuguesas enviaram repórteres e ao fim de alguns dias estavam a prestar bons serviços, depois de inicialmente se terem centrado muito nos "resorts" turísticos da Tailândia e nas vítimas portuguesas. Por cabo e satélite, pôde verificar-se, entretanto, a eficácia da Sky News e a magnitude da BBC, que revelou ser a única rede global de informação televisiva do mundo.

* * * Wenceslau de Moraes (1854-1929) viveu o fascínio do Oriente. Vive-se agora o fascínio por ele. O teledocumentário "Moraes do Japão ou as Quatro Estações da Alma" apresenta esta figura que atrai por igual japoneses e portugueses. Mostra-o desadaptado à vida nacional e encontrando no Oriente, primeiro em Macau, depois no Japão, a fuga e o corte das raízes.

Ao contrário dos ocidentais que, desde meados do século XIX, fizeram do orientalismo uma fonte de inspiração temática ou de renovação da arte ocidental, Moraes deu o passo sem regresso de mudar, não de estilo, mas de vida. É significativo que tenha cortado com o seu país, demitindo-se das suas funções diplomáticas para imergir por completo no quotidiano japonês. Daí que, como refere o programa, se possa vê-lo como um japonês que calhou ter nascido em Portugal.

O documentário permitia concluir que o Japão vive com alguma esquizofrenia entre a ocidentalização e a tradição que o ocidental Moraes em tempos adoptou. Compreende-se o interesse e devoção que Moraes desperta no Japão ocidentalizado de hoje: representando o percurso contrário ao do país nos últimos séculos, Moraes funciona como garante, como utopia para a forma de vida e a cultura japonesas.

O documentário centra-se na narrativa de vida e menos na obra de Moraes, o que pode dever-se não só à maximização do que é "audiovisuável" mas também ao facto de a obra não se destacar como criação literária; destaca-se na compreensão do Outro. É provável que Moraes tenha renegado o Ocidente por razões do seu Eu Ocidental (amor falhado em Lisboa, mudança dos "valores" no final do século XIX, vontade de partir). E é também provável que, por isso, ao imergir na vida japonesa, tivesse fechado os olhos aos defeitos da sociedade nipónica, não nos dando conta deles. É mérito deste programa permitir compreender a personagem através de uma narrativa oral e visual escorreita, com depoimentos curtos mas significativos de portugueses e japoneses. Foi realizado por Francisco Manso com texto seu e de Luís Faria Coelho, numa parceria da Dois com o Instituto Camões.

Na semana seguinte, a Dois apresentou outro programa sobre as relações entre Portugal e o Japão, desta vez centrado no quotidiano de alguns portugueses que vivem em diferentes cidades. Do ponto de vista formal, "Portugal-San: Portugueses no Japão", de Ana Romeu, não tinha qualidade de documentário televisivo, mas era uma reportagem-quase-teledocumentário interessante por dar a conhecer um mundo que os espectadores de televisão portuguesa desconhecem e por fazê-lo através de compatriotas fixados no Japão.

Também este programa mostrava o fascínio dos japoneses por um passado em que os portugueses foram os primeiros ocidentais a estabelecer-se no seu país. Que esse contacto tenha sido pacífico, quer ali, quer em Macau, é motivo de admiração para japoneses e chineses. E é tão admirável como a incapacidade portuguesa de fazer negócios no Oriente, matéria que Moraes já referia na segunda metade do século XIX e que o trabalho de Ana Romeu para a Dois ilustrou para este início do século XXI.

* * * Susan Sontag (1933-2004) foi uma intelectual das que teve coragem de mudar ao longo da vida. Assim aconteceu com as suas convicções políticas mas também com o trabalho, como o que dedicou à análise das imagens. Numa entrevista de 1992 disse: "Tudo o que o meu trabalho diz é 'sê sério, sê arrebatado, acorda'." Ser sério, dedicado, surpreender: eis, pois, essências de trabalho e de vida.

O seu livro mais recente, "Olhando o Sofrimento dos Outros" (Gótica, 2003), que recenseei nesta coluna, aplica-se bem à tragédia asiática ocorrida um dia antes de Sontag morrer. "Ser espectador de calamidades que se passam noutro país é uma experiência moderna quintessencial, a oferta cumulativa de mais de século e meio destes turistas profissionais, especializados, a que se chama jornalistas." Sontag já não viveu para ver turistas amadores, não-especializados, transformarem-se em jornalistas de calamidades via telemóveis fotográficos.

Este ano, a propósito das fotos de abusos de prisioneiros iraquianos em Abu Ghraib, ela escreveu uma espécie de adenda àquele ensaio. O artigo, "Olhando A Tortura dos Outros" ("New York Times", 23/05), começa referindo que "o museu da memória ocidental é agora principalmente visual". E termina, depois de analisar as imagens e a reacção dos dirigentes norte-americanos, sublinhando o papel da imagem na busca de verdades que desagradem ao poder ou que, por exemplo, ajudem a fazer da tragédia do tsunami uma torrente de solidariedade: "Na nossa sala de espelhos digital, as imagens não desaparecerão. Sim, parece que uma imagem vale mil palavras. E mesmo que os nossos dirigentes escolham não olhar para elas, haverá outros milhares de fotografias e vídeos. Imparável."