Eduardo Cintra Torres

Comunicadores Transcendentais


Para entrevistar Emídio Rangel, o Clube de Jornalistas (canal 2, 16.12) reuniu um comité de jornalistas que se lhe dirigiram como a um deus por uma vez descido à terra. Havia que aproveitar uma oportunidade única para interrogar a divindade. O gerido silêncio de Rangel durante dois anos proporcionou esse ambiente de hossana na savana.

A entrevista serviu para Rangel revisitar a sua versão das passagens na SIC e na RTP. Nada de novo. Porquê, então descer à terra? Rangel apareceu nesta entrevista na posição patética de se dizer pronto a trabalhar de novo em televisão. Quer dizer, está no mercado de trabalho e pede emprego via TV, como num "talk-show". Triste.

* * * Fulton J. Sheen, arcebispo de Nova Iorque, morreu há 25 anos. Corre o processo da sua eventual canonização. Em 2002 o Vaticano declarou-o servo de Deus. Uma missa em 9 de Dezembro na catedral de St. Patrick, em Manhattan, atraiu um número inesperado de crentes.

O dado mais relevante da biografia de Sheen é o facto de ter sido o primeiro religioso a apresentar um programa na televisão norte-americana. Aos 30 anos, em 1949, foi o pioneiro da religião na televisão com o programa semanal de meia hora Vale a Pena Viver a Vida. Com 25 milhões de espectadores, tinha mais audiência do que o programa de entretenimento do famoso Milton Berle.

A charla sobre religião, política e outros temas do bispo Sheen atraía gente de várias confissões religiosas. Ele conseguiu mesmo inesperadas conversões ao catolicismo, como a certamente milagrosa conversão de Henry Ford II. Quando ganhou um prémio de televisão Emmy, Sheen atribuiu o prémio aos "quatro autores" do seu programa: Mateus, Marcos, Lucas e João.

Algumas das posições políticas que defendeu foram e são ainda controversas, mas o que hoje se recorda da sua capacidade comunicativa é suficiente para servir de alavanca a um processo de canonização que atrai inúmeras pessoas no Estado de Nova Iorque. Este caso revela a importância extraordinária que pode ter a televisão como meio de comunicação e a marca profunda que os bons comunicadores deixam na comunidade - e na História.

Bem vistas as coisas, todos os santos foram bons comunicadores. Mas nem todos os bons comunicadores são santos. Quando os bons comunicadores representam o mal, ou são demagogos... é o diabo.

* * * Tom Brokaw deixou em 2 de Dezembro de apresentar o principal noticiário da NBC depois de 20 anos. Dan Rather deixará em Março de apresentar o principal noticiário da CBS depois de 24 anos. Da tríade dos noticiários nova-iorquinos que dominaram a América durante décadas, ficará apenas o canadiano Peter Jennings, na ABC.

O que termina com a partida de Brokaw e Rather? Primeiro, o fascínio dos "anchors", dos apresentadores de noticiários. Mais do que qualquer outro país, a América mitificou os teleapresentadores para além do razoável. São mais do que âncoras. Estes homens de meia ou terceira idade, liberais, brancos, jornalistas e afirmativos, representaram a América liberal, capitalista e religiosamente laica da segunda metade do século XX. Mais do que leitores de notícias, foram porta-vozes. E representaram o predomínio do liberalismo nova-iorquino nos principais media americanos.

Ao mesmo tempo, tomaram o lugar dos antigos bardos. Os apresentadores dos telejornais foram os contadores de estórias dos tempos modernos. Olharam-nos nos olhos a todos, reunidos em milhões de lares como se à volta da fogueira ou do altar, e recitaram-nos aos ouvidos as últimas novidades de perto e de longe, falando e descrevendo por palavras e imagens as tragédias e melodramas e as novidades sem emoções; e não esqueceram comédias, para aliviar o quotidiano.

Estes Homeros vernáculos tornaram-se personagens, mais eles mesmos do que as notícias. A televisão americana valoriza muito as personagens, que são a principal "commodity" do media. De segunda a sexta, eles não falhavam. Sábados e domingos não apareciam, porque o fim-de-semana não é a sério. É lazer. No Verão faziam férias, como as outras pessoas. E assim a sua presença televisiva coincidia com o ritmo diário e anual dos espectadores.

Estes apresentadores de televisão são homens sérios. Seria impossível dominarem os ecrãs durante dezenas de anos se o não fossem. A televisão mostra o corpo e, através dele, para além dele. Os espectadores acreditam neles mais do que em quaisquer outras pessoas. Daí que uma notícia sua que se revele falsa seja gravíssima.

Eram jornalistas de tendência liberal e agora vão-se embora porque estão velhos, e o liberalismo informativo também. A América envelhece e conservadoriza-se. As pessoas querem as notícias que lhes agradam, não as notícias. E hoje, se os contadores de estórias habituais já não lhas contam, podem mudar de bardos. Sobem as audiências dos canais de informação conservadores, como a Fox News, porque dão a milhões de espectadores a versão da história que querem.

Caminharão os grandes noticiários nova-iorquinos da ABC, NBC e CBS para o mesmo conservadorismo? Brian Williams, o apresentador que substituiu Tom Brokaw, apresentou-se como um homem da América profunda (o que quer que isso seja) e contra o "eixo Nova Iorque-Washington". Jennings também adoptou um discurso de América profunda, para não se afastar da nova ruidosa corrente conservadora.

A informação televisiva liberal foi abalada no final do Verão pela notícia falsa que Dan Rather apresentou acerca do serviço militar de George W. Bush. O próprio apresentador desmentiu-a em 20 de Setembro: "Quero pedir desculpa, pessoal e directamente. Este foi um erro feito em boa-fé."

A falha marcou o final de uma longa carreira jornalística iniciada no dia de 1963 em que o jovem Rather era o repórter da CBS que acompanhava a visita do presidente John Kennedy a Dallas. Rather disse numa entrevista em 1988 ao então vice-presidente George Bush pai: "Vocês fizeram de nós uns hipócritas perante o mundo inteiro." A sua carreira termina agora antes de tempo por causa da informação falsa acerca do filho Bush, agora presidente. Rather pretendia deixar a apresentação do noticiários da CBS em 2006, na noite em que se completassem 25 anos sobre a data em que substituiu o mais mítico dos bardos, Walter Cronkyte, o jornalista-Homero que pela CBS anunciou aos americanos a morte de Kennedy.

Os noticiários das três cadeias ABC, CBS e NBC continuarão a ser a principal fonte de informação na América, apesar da queda constante da televisão generalista. Mas o estilo e o significado mudarão. O mito do apresentador-bardo fica ligado ao século XX.