Eduardo Cintra Torres

Viagem ao Coração das Trevas


O teledocumentário "Quando o Comboio Apitar...", de Anabela Saint-Maurice (RTP1, 2004), apresentado em 9/12, mostra o que resta do Caminho-de-Ferro de Benguela e como, depois de décadas de guerra civil, a linha que atravessa Angola do Atlântico ao Congo teima em querer voltar à vida apesar do desmazelo governamental.

É difícil. Se demorou tantos anos a terminar sob a direcção de potências coloniais e empresas empenhadas na sua construção, como será agora, com um governo independente e rico, mas incompetente e tendo por lema desprezar o povo em primeiro lugar?

Os nossos olhos de espectadores portugueses e ocidentais espantam-se perante imagens belas, novas e afinal tão vulgares quase todas: na paisagem de Angola, basta ligar a câmara para impressionar o filme ou o vídeo com uma natureza enorme, verdes da vegetação e castanhos da terra a perder de vista, e juntar-lhe uma narrativa estruturada.

É também por isso, para mostrar o mundo, que fazem falta os documentários e os teledocumentários. Para não vermos apenas São Bento, Belém, o estádio do Dragão ou a catedral da Luz, a Casa Branca e o Eliseu, o hospital de Santa Maria ou a quinta das celebridades, a segunda ponte do Feijó ou a via de cintura interna. Para não vermos apenas o Rato e a Buenos Aires e a Soeiro Pereira Gomes, o estádio de Alvalade ou a fachada da Casa Pia, o estúdio "kitsch" do Lumiar ou de Carnaxide, a casa surreal da novela ou o tribunal de Gondomar.

"Quando o Comboio Apitar..." trouxe-me à memória a minha única experiência angolana. Devo ser dos poucos europeus que em Angola nunca viu o Atlântico. Apenas conheci, durante seis semanas de 1983, uma faixa do interior, desde a fronteira da Namíbia até ao Alto Chicapa, uma localidade algumas dezenas de quilómetros a norte do Caminho-de-Ferro de Benguela (CFB). A UNITA encenou a conquista dessa terra esquecida para jornalista ver.

O movimento controlava então grande parte do território do país e nele guerreava. Levou-me à estação dos comboios do Munhango, terra onde nasceu Jonas Savimbi, filho dum funcionário do CFB. Os comboios já não circulavam. A estação era igual aos outros esqueletos de alvenaria e ferro abandonados que se vêem no documentário de Anabela Saint-Maurice. No meio de terras de ninguém, bastava-me ver os carris escalavrados perdendo-se no horizonte para entender o valor incalculável do comboio desperdiçado pela guerra entre duas cliques monstruosas baseadas a milhares de quilómetros do Munhango, uma em Luanda, outra nas Terras do Fim do Mundo, no extremo oposto de Angola.

Isso é passado. Aqui deixo como memória uma imagem de 1983 colhida no Munhango. Mostra um soldado da UNITA na linha interrompida. O teledocumentário de Saint-Maurice finge que procura fugir do passado de guerra, mas ele percorre o caminho-de-ferro de todas as formas. E o documentário lá vai chegando a pontes destruídas, minas enterradas que funcionam em tempo de paz como pesadelos que ainda matam e estropiam, campos de refugiados, cidades destruídas, fome, doença, abandono, promessas de reabertura, obras lentas, esperança mitigada.

Os funcionários antigos da empresa, guardadores de técnicas e regras antigas, mostram a teimosia das pessoas em querer sobreviver com decência e trabalho digno. Recordam o passado colonial com cuidado factual. E o paradoxo é que o tempo vivido sob o domínio dos portugueses é para eles menos mau do que as décadas de guerra civil entre angolanos independentes e que os anos recentes sob o governo dos grandes sobas do petróleo. Como dizia em 1999 um antigo contratado para o trabalho forçado no cacau de São Tomé, nos tempos coloniais "só não tinha a liberdade".

Falava ele para um outro interessante teledocumentário de Anabela Saint-Maurice, "O Contrato", repetido na RTP1 em 2/12. Nas roças abandonadas e despojadas, sem trabalho e sem condições de vida, sem ter como voltar a uma família de onde foi arrancado há décadas, o serviçal deportado dizia que tinha uma vida material melhor no tempo do colonialismo. Noutra roça, um antigo criado dos patrões portugueses apenas pode descrever, para imaginarmos, como era a farda branca com botões de prata e como era o serviço de prata e porcelana entretanto roubado pelos novos administradores do Estado são-tomense.

Para explicar, ambos os teledocumentários fazem incursões históricas sem saudosismo, uma no passado do CFB e nos tempos áureos do colonialismo até aos anos 60, outra no sistema do "contrato", forma que os colonialistas portugueses encontraram de substituir a escravatura pela sua forma mais próxima: uma deportação à força e um contrato à maneira.

Sobrevinda a independência, nenhuma das duas histórias tem final feliz, seja num país em paz, como São Tomé e Príncipe, seja num país que os próprios dirigentes destruíram com a guerra e o abandono.

O caminho-de-ferro de Benguela permite uma viagem ao coração das trevas dos males maiores e menores do género humano e a que a paisagem resiste. A viagem metaforiza visualmente um povo que ainda não se encontrou. E em São Tomé a bondade da natureza e das pessoas parece esconder que o pequeno arquipélago encalhou também na mesma noite de desprezo e esquecimento.

Das roças destruídas pelo tempo de incúria e das linhas oblíquas e ferrugentas do caminho-de-ferro de Benguela solta-se o sabor amargo da trágica dificuldade do continente africano em enxertar a modernidade no seu terreno e na sua cultura.