Eduardo
Cintra Torres
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Generalistas? |
Esta campanha revela um paradoxo da criatividade e da indústria televisivas. O Gato Fedorento e a figura de humor brilhantíssimo criada por Ricardo Araújo Pereira, num sketch com cerca de um minuto, foram apresentados num canal por cabo e destinado em primeiro lugar aos jovens. Todavia, a fama do Gato rapidamente ultrapassou as pequenas fronteiras do canal temático e ouvia-se muita gente falar do programa. Tornou-se um programa de culto, o que é um facto bem raro em qualquer parte do mundo. Noutros países, onde as leis do mercado funcionam normalmente, a televisão generalista, sempre à procura de novos talentos "temáticos", chamaria a si o Gato Fedorento. Não foi isso que sucedeu neste caso. Enquanto os "criativos" que dirigem as televisões generalistas pensavam, quem chamou o Gato à televisão generalista foi... uma empresa capitalista centenária, um banco de retalho ("generalista", portanto), levado pela mão dos publicitários. Aquilo que a televisão generalista teve medo de fazer - arriscar - fê-lo o Montepio e a sua agência. Houve um responsável de programação de um canal generalista que me disse que o Gato é muito "elitista" no seu humor. Viu-se! O Gato está numa campanha publicitária em todos os canais generalistas, com um êxito enorme não só junto do público-alvo mas também junto de outros públicos. A primeira regra dos canais generalistas é: segurança acima de tudo, não correr riscos. O conflito entre inovação e repetição caracteriza toda a arte e toda a cultura popular, mas na televisão ele é particularmente visível porque... a televisão vê-se, é uma montra sempre presente na casa das pessoas. Os canais de maior audiência evitam a inovação não testada e preferem juntar pedaços de êxitos anteriores. Na indústria televisiva americana isso foi particularmente evidente nas séries dos anos 70 e 80, que combinavam nacos de séries anteriores numa nova série. Por exemplo, um projecto de série foi apresentado às televisões generalistas como Hill Street no Hospital. Misturava o género inovador de Hill Street com o velhinho modelo de séries hospitalares. Veio a realizar-se como St. Elsewhere no modelo ficcional e mais tarde como ER - Serviço de Urgência no modelo narrativo. Por cá, como quase não há séries dramáticas, esta mistura ocorre entre "reality shows" e outros géneros de entretenimento. Por exemplo, programa de cantorias mais Big Brother igual a Academia de Estrelas; apanhados mais programa de conhecidos igual a conhecidos apanhados; etc. Raramente os híbridos têm o mesmo sucesso dos modelos copiados, mas a indústria prefere não arriscar, precisamente porque é uma indústria: o nível de renovação mínima dos projectos é o que lhe permite lucros mais seguros. O capitalismo já não é o que era antigamente, uma fábrica de novidades. Mais vale ganhar bastante com um "Big Brother XIII" do que arriscar num programa inovador que acerta no gosto e nos interesses duma grande parte da população. A televisão entrou neste ritmo nos anos 70 e logo foi imitada por Hollywood, com as suas "sequelas" aos grandes êxitos do Verão passado ("Rambo", "Rocky", "Superman", etc). Um grande número de novos projectos televisivos "estão para a criatividade como a fotocopiadora para a escrita" (Brian Winston). A esta incessante mistura de êxitos anteriores em novos programas Todd Gitlin chama a forma ou "estilo recombinante" da televisão, uma "novidade sem risco" que "recolhe o velho em novos pacotes e sonha com uma síntese mágica". A ironia da campanha televisiva do Montepio com o "elitista" Gato Fedorento é que os mesmos canais que não aceitariam um programa deste género fazem dinheiro com ele... vendendo espaço publicitário ao banco. Entretanto, o programa continuará no temático canal onde surgiu, a SIC Radical, onde deverá ressurgir em 2005. Neste caso, a regra da segurança da TV generalista é uma benção, dada a sua tendência para estragar talentos e programas da televisão temática, na qual é mais fácil controlar os elementos criativos. Nos canais generalistas, a produção é muito mais controlada, e em consequência, a criatividade. Num canal generalista, o Gato Fedorento arriscava-se a que lhe impusessem entrevistas com famosos ou canções, ou coisas do género. Na televisão generalista, o humor encarreira quase sempre no modelo de Herman José. Foi o que sucedeu ao humorista Francisco Menezes, que passou em poucos meses de jovem promessa a apresentador de concursos de misses. Enquanto guardiões da cultura popular, os canais generalistas tornam-se altamente castradores das inovações no seu seio ou das que ocorrem noutros ramos da arte e das indústrias culturais. Num artigo recente, Miguel Esteves Cardoso recordava o mal que a RTP, quando televisão única, fez à música popular portuguesa nos anos 80, rejeitando quase totalmente a novidade e defendendo o pior-que-pimba, a "música ligeira" ("pois era esse o nome da besta"): "a recente inauguração do canal RTP Memória tem sido como um pesadelo recorrente na minha vida: os programas musicais, sobretudo, lembram em carne viva a ácido-sulfúrica agonia quer o pingue-pongue da música ligeira nos corroía o juízo." ("Blitz", 23.11). Essa "música ligeira" não melhorou com o tempo, pelo contrário. É lixo audiovisual. Entretanto, da música popular portuguesa que ainda hoje se reedita quase não há sinal na RTP Memória. A tendência da televisão generalista para escolher modelos repetitivos e recombinantes não ocorre apenas no tempo mas em simultâneo. Uma estatística simples da programação actual dos canais generalistas revela outros pesadelos recorrentes: entre 10 e 12 telenovelas diárias, entre quatro e cinco concursos diários e uma meia dezena de "talk-shows" emocionalistas diários. O "prime-time" é um garrote à criatividade: o modelo dos três canais generalistas é praticamente idêntico de segunda a sexta. As grelhas da RTP1, SIC e TVI apontam para uma tendência dos canais generalistas para serem cada vez menos generalistas. Repetem-se uns aos outros, sem variedade. Repetem e recombinam modelos ao longo do dia e ao longo dos dias. O lado industrial está neles cada vez mais presente e o lado criativo cada vez mais ausente. |