Eduardo Cintra Torres

Quando o Jornalismo Não Se Respeita


Na tradição a Oeste de Samarcanda, um antigo relato de uma sociedade organizada recorda-nos que a auto-regulação é uma miragem: Adão e Eva foram expulsos do Paraíso, incapazes de se auto-regularem. Desde então, andamos todos à procura de caminhos e atalhos, com mais ou menos choques e trambolhões. Se fosse possível a total auto-regulação, não havia precisão de polícia ou tropa, nem mesmo de governo. Era o Paraíso.

A sessão televisiva inaugural do julgamento Casa Pia foi o inferno. Mostrou a javardice em que caem pessoas de bem quando não se regula a actividade colectiva. As televisões demitiram-se das regras do comportamento urbano e profissional e o aparelho judicial e a autoridade policial juntaram-se-lhes na incompetência que ficou à vista quando, apesar da expectativa dos "media" face ao julgamento, permitiram que o minúsculo Largo da Boa-Hora se transfigurasse em palco de circo.

E circo foi. O palco não tinha condições para acolher os intérpretes principais (juizes, arguidos, advogados, repórteres), quanto mais os secundários (polícias, populares, funcionários judiciais). A juíza, encurralada e acossada por repórteres já em histeria, pediu-lhes que respeitassem a dignidade dela e deles mesmos. A sua decisão de transferir o julgamento para Monsanto foi, portanto, tardia; o atraso contribui para a caracterização circense do julgamento. E a polícia não organizou devidamente o acesso das pessoas e o controle de repórteres e populares.

Torna-se cada vez mais necessário que a mobilidade dos repórteres seja circunscrita, organizada. Não sendo possível eles auto-regularem as suas movimentações quando em concorrência, quando em directo, sob uma pressão incrível dos acontecimentos e das emissões, cabe às autoridades reguladoras dos movimentos das pessoas no espaço público - os poderes e as polícias - estabelecerem regras e criarem barreiras. Não se trata de limites à liberdade de expressão, trata-se apenas de limites à anarquia.

Os direitos de quinta-feira na Boa-Hora, a quinta-feira das celebridades, espelharam a degradação a que chegou a informação televisiva. O directo informativo foi despojado do informativo, ficou apenas o directo. Os repórteres atropelaram-se e foram atropelados.

E para quê? Para se auto-humilharem em exercícios de nulidade informativa. Perguntas inanes, interpelações estúpidas a funcionários judiciais, comentários vergonhosos sobre vestuário e estados de espírito, mesquinhez de detalhes inúteis, histeria, ignorância, infantilidades. Os repórteres na Boa-Hora foram a carne para canhão das suas chefias. A montagem do circo à porta da casa de Carlos Cruz, donde os directos começaram às seis da manhã, indicou a predisposição dos responsáveis editoriais da televisão para encharcar os ecrãs de "emoções", de "movimento", de declarações circunstanciais que os repórteres, depois, procuram analisar com rudimentos semióticos. Carlos Cruz, então o café estava doce? Perguntas como esta, e as respostas a que as pessoas se prestam, permitiram interpretações riquíssimas sobre "estados de alma", confirmando a tendência da televisão para se afastar do jornalismo e se entregar à psicanálise vernácula em directo.

É difícil evitar que as redacções televisivas se entreguem à sua própria barbárie cultural e jornalística. Mas é possível aos poderes públicos limitarem o circo no território que lhes pertence: a rua, a ordem pública. Em democracias mais antigas e desenvolvidas os espaços para protagonistas e autores das notícias são delimitados de forma a que os jornalistas trabalhem com dignidade e profissionalismo e que os protagonistas sejam tratados com dignidade e não sejam agredidos pela voracidade dos microfones. Seria simples criarem-se regras para que os repórteres pudessem exercer o seu trabalho sem atropelarem os interlocutores, o jornalismo e a dignidade de todos. Mas muitas vezes as coisas mais simples são as mais difíceis de encontrar e realizar.

Um homem sem qualidades A entrevista de Santana Lopes a Judite de Sousa (RTP1) confirmou a nulidade do primeiro-ministro como homem de Estado e governante. Um chefe de governo que está 32 minutos pressionando jornalistas e queixando-se de cabalas e críticas nos "media" não tem qualidades para dirigir um país. A RTP1 deu-lhe uma hora e meia para ele espraiar a sua visão do país e do mundo e ele gastou mais de um terço do tempo com obsessões pessoais acerca dos "media".

Só isso já seria lamentável, mas Santana desceu mais baixo: reivindicou mais tempo de antena, pois acha pouco o que tem, demonstrando o quanto é antidemocrática a sua concepção do poder; e pressionou o próprio órgão de informação que o acolhia, a RTP1, acusando-a de dar guarida, veja-se bem, a um "director de um jornal" que faz comentário.

Referia-se ao comentário político na RTP1 do director do PÚBLICO, José Manuel Fernandes. As duas referências de Santana ao seu esporádico espaço de comentário na RTP1 constituíram uma intolerável pressão sobre a empresa e a informação da RTP. Tal como deu o seu acordo, duas vezes, às incríveis declarações de Gomes da Silva sobre Marcelo, Santana pressionou agora a RTP, em directo e na própria RTP. A opinião pública já está tão amorfa que ninguém se referiu a esta inaceitável pressão de Santana Lopes sobre um órgão de informação tutelado pelo próprio governo. Há dois meses atrás, estas declarações de Santana seriam suficientes para se convocar audições no parlamento ou na Alta Autoridade.

O PS, aliás, já deixou cair a questão da liberdade de expressão, que disse estar nas suas prioridades quando rebentou o caso Marcelo. Sócrates calou-se; logo, consente. Percebe-se: o PS prefere uma direcção de informação "de consenso" na RTP a uma direcção de informação independente, como era a de Rodrigues dos Santos: os partidos e os medíocres têm horror às pessoas independentes.

Além disso, a facção de Jorge Coelho no PS conseguiu na Lusomundo um outro "consenso" do habitual bloco central asfixiante da informação livre. Susteve uma direcção próxima do PS no "JN". No "DN", onde os escandalosos administradores Bettencourt Resendes e Luís Delgado mantêm colunas de "opinião", a nova direcção tem cinco nomes (!): além dos dois directores, que agradam ao governo, inclui uma nóvel aquisição santanista (Pedro Rolo Duarte) e dois socialistas (Peres Metello e João M. Fernandes). Coelho conseguiu ainda colocar o seu homem de mão Carlos Andrade como director-geral de publicações: quando o PS ganhar as eleições, o "DN" terá nele um novo director "natural". Já sabemos o que nos espera em termos de política de informação num governo Sócrates. Laranja ou rosa, é a mesma natureza.