Eduardo Cintra Torres

Saneamento Político


Com a brutalidade anunciada, os três primeiros objectivos do Governo na área da informação estão realizados: afastar Marcelo da TVI, afastar a Direcção do DN e afastar a Direcção de Informação da RTP.

No caso da televisão pública, o projecto foi anunciado por uma fonte governamental no "Expresso" em 16 de Outubro: afastar a equipa de Rodrigues dos Santos e nomear Luís Marinho. Num recente programa Expresso da Meia-Noite (SICN, sextas), Marinho "ausentou-se" da crítica à intervenção do Governo no caso Marcelo. Semanas mais tarde, é Director de Informação da RTP.

A acção da Direcção de Rodrigues do Santos tinha aspectos criticáveis, mas secundários perante o fundamental: era independente do poder político. Um governo brutal e perigoso como o de Santana não tolerava que a TV pública fosse sempre independente e não acatasse ordens ao menos nos momentos-chave. Com um pretexto qualquer, a direcção de Rodrigues dos Santos foi saneada politicamente. O seu afastamento constitui um retrocesso de anos na credibilidade da informação da RTP, como referia o "Expresso" em editorial (20/11).

A nova Direcção tem sobre a sua cabeça o ónus de ter sido nomeada por sugestão pública do Governo e de substituir uma equipa condenada pelo Governo; a nova Direcção só será aceite como independente se for independente todos os dias, a todas as horas, em todas as notícias. Bastará uma só notícia que se perceba ter sido plantada pelo Governo (e percebe-se facilmente) para que a nova direcção fique marcada como estando a dar cumprimento ao plano do Governo mais brutal e perigoso que a democracia portuguesa conhece desde há quase 30 anos. O mesmo se pode dizer da nova direcção do "Diário de Notícias".

A utilização abusiva dos órgãos de informação pelo poder político e pelos negócios faz-se hoje por processos menos visíveis do que nos tempos de Soares, Marques Mendes ou Guterres, seja por intervenções pontuais que os governos consideram vitais, seja através de algumas "agências de comunicação" que não passam de "lobbies" de interesses inconfessáveis ligados ao poder político. O desplante de pelo menos uma destas agências chega ao ponto de indicar a jornalistas corruptos ou sem coluna vertebral quais devem ser as notícias a destacar nas primeiras páginas. Não são só empresários do futebol que apresentam sinais exteriores de riqueza. Também alguns políticos e jornalistas.

Porquê o descaramento da intervenção do Governo em matéria de informação, que é simbolizada pelo duplo flic-flac de costas do ministro Morais Sarmento de um para outro governo PSD? Parece contraproducente. Mas é que este Governo é opaco, como disseram, a propósito do orçamento, diversos economistas. Precisa de esconder os actos dessa opacidade. Precisa de enxotar ou condicionar os jornalistas sérios, livres e independentes. Precisa de confundir a opinião pública. Precisa de fazer as suas coisas lá no Governo o mais depressa possível, antes que se descubram. Por isso, este Governo está pronto a pagar os custos da brutalidade da intervenção mediática se isso distrair e se o mantiver lá mais uns meses.

O mal do eixo No tipo "déjà vu", o programa Eixo do Mal (SIC Notícias, sábado) é apresentado como herdeiro da Noite da Má-Língua, ícone da SIC generalista há uma década. A Noite da Má-Língua foi um dos programas que mais rasgou horizontes no quadro mental da televisão portuguesa; pela primeira vez, abordavam-se temas da actualidade através do humor - e para mais um humor inteligente, irónico ou desabrido. O grupo central do programa - Miguel Esteves Cardoso, Rui Zink e Rita Blanco e a apresentadora Júlia Pinheiro - desenvolveu um alto grau de interacção e cumplicidade.

Copiando o modelo, no Eixo do Mal um apresentador e quatro comentadores, em volta de uma mesa, passam em revista temas da semana e discorrem sobre eles à vez e em breves apreciações, entre o sério e o cómico. Aplica-se o conceito de "má-língua", pois a brevidade dos comentários obriga a que sejam autoritários como a maledicência (não necessitam de prova) ou a que sejam embrulhados pela comicidade.

Quem são os cinco convivas? O apresentador é Nuno Artur Silva, autor e empresário, principal proprietário das Produções Fictícias. Apresentou-se como "não colunista" e aos restantes como "colunistas". São eles: Nuno Júdice, colunista em "O Independente" e empresário; Clara Ferreira Alves, autora, colunista no "Expresso" (grupo Balsemão), no Diário Digital (de Luís Delgado e grupo Mello) e na TSF (grupo PT) e directora da Casa Pessoa (Câmara de Lisboa); Pedro Mexia, poeta, crítico no "Diário de Notícias" (grupo PT) e colunista na "Grande Reportagem" (grupo PT); e Daniel Oliveira, assessor do Bloco de Esquerda. No primeiro programa, comentaram a suposta falta de independência de outros jornalistas e comentadores. No terceiro programa foram apresentados de outro modo, com auto-ironia, mas já era tarde.

O programa tem o ar cansado de quem se sabe a repetir uma fórmula que teve o seu tempo. Ao terceiro programa, ainda era pouca a interacção: ora agora digo eu as minhas bocas, ora agora dizes tu as tuas. E, se há um indício de diálogo, não tem nem graça nem espírito que o recomendem. Ainda se houvesse um mínimo de solidez nos comentários. Mas tal não é possível devido ao modelo de programa.

O mal do Eixo é que já tem dificuldade em competir, ou impor-se, num meio saturado de "media" e de mensagens. A irreverência? Não é novidade e ali parece estudada. A má-língua? Já não chega. O comentário brevíssimo? Mas já há centenas deles, incluindo os dos próprios intervenientes nas suas colunas e noutras intervenções públicas. Veja-se como os convivas do Eixo sugerem leituras. No primeiro programa, Ferreira Alves gozou com Marcelo Rebelo de Sousa por este não ler os livros que publicitava. Pois nessa edição ela mesma sugeriu um livro de que só tinha lido o início; no programa seguinte sugeriu o novo romance de António Lobo Antunes, que fora lançado no dia anterior (elogiou-lhe o que dele leu: o título); e no terceiro programa falou da capa dum livro.

Ao contrário do que sucedia há dez anos, hoje há muitos e bons especialistas das matérias, e esses especialistas estão presentes no espaço público e com uma capacidade de expressão próxima da linguagem dos "media" e dos espectadores. As universidades produzem milhares de especialistas; dezenas são chamados a comentar nos "media", incluindo a televisão.

Aos especialistas há que juntar alguns ex-governantes e ex-dirigentes políticos que acrescem peso e consistência ao discurso mediático. Torna-se hoje mais difícil que o tempo de antena seja ocupado por comentários pouco esclarecidos, ou de pessoas sem especialização, ou sem tempo para mais que uma "boutade". Para o espectador, o termo de comparação está num canal ao lado ou num jornal do dia. Não sei como poderá o Eixo do Mal ultrapassar estas dificuldades.