Eduardo Cintra Torres

3,2,1... 0


RTP1 apresentou como novidade do último trimestre o regresso do 1,2,3, agora produzido e apresentado por Teresa Guilherme. O programa fez êxito na RTP1 há duas décadas, quando a operadora pública vivia solteira no éter.

Fizesse o que fizesse, gastasse o que gastasse, os seus programas eram sempre pequenos ou grandes êxitos. Este foi grande. Se bem me lembro, o modelo foi idêntico ao actual: público presente, intermezzos cómicos e uma negociação entre o apresentador (Carlos Cruz) e um casal concorrente.

A negociação era o que mais atraía. Com grande capacidade de esconder as suas intenções, a que somava uma certa perversão na forma como tratava o casal, Cruz mantinha o suspense, sem que concorrentes, público presente e espectadores conseguissem adivinhar ou prever o desenlace da negociação.

Já então o programa não poderia caracterizar-se como "serviço público". Puro circo. Há 20 anos só a RTP podia dar circo ao povo. Hoje, a menos que se considere que o Estado deva dar circo televisivo, não lembraria ao diabo desenterrar o 1,2,3 do caixote do lixo do "serviço público". Desenterraram-no; mataram a sua memória. Agitado pela Guilherme no ecrã, o 1,2,3 revela como a Direcção de Programas da RTP1 mantém em grande parte o conceito que já existia no tempo das administrações anteriores: dar porcaria aos pobres.

Há duas tendências na RTP1: a que procura acrescentar mais-valias de serviço público, como ficção de qualidade, programas com valores positivos, documentários e programas de informação; e a que insiste em lixo disfarçado de "popular" para assegurar um mítico e irracional mínimo de audiência (20 por cento de share). A RTP1 mistura as duas tendências.

O 1,2,3 não é mau, é péssimo, e não por ser "popular". É péssimo porque é pouco profissional, abandalhado, gritado, ordinário, por vezes rasca. Não tem qualquer mais valia, nem sequer humorística. Os conhecimentos que exige dos concorrentes são como palhinha em palheiro de entretenimento grotesco. Não ensina a rir, porque nem ensina nem faz rir. Vi no 1,2,3 dois pseudo-actores simulando que urinavam para cima do público presente, vi Teresa Guilherme histérica, ouvi sketches retrógrados de suposta comicidade. Vi a falta de profissionalismo da Guilherme e dos seus cómicos de serviço, incapazes de seguirem os próprios guiões, resvalando na gargalhada para a cumplicidade de amigos na tasca. Vi um homem beijando um sapo, versão suave, quiçá de "serviço público", da mulher que comeu larvas num programa da SIC apresentado por Jorge Gabriel. Até lá vi Duarte de Bragança sendo gozado pelo imitador a seu lado. O que um homem faz para chegar a rei!

Teresa Guilherme comporta-se como se fosse uma diva televisiva a quem tudo se permite, que pode dizer qualquer disparate, rir descontroladamente ou gritar como se estivesse na casa dela. Mas as divas são as profissionais cujos caprichos ficam atrás do palco. Guilherme nem mesmo negoceia capazmente com os concorrentes as soluções para uns textos incríveis, nos quais é impossível encontrar pistas a respeito dos prémios; e nem mesmo lê os textos em condições.

E tudo isto se arrasta por três intermináveis, doentias horas. E com inúmeras inserções publicitárias no interior do programa. É ao contrário, aliás: com inserções de conteúdo para justificar a publicidade. A pouca-vergonha chega ao ponto de o anúncio de um dos patrocinadores ser protagonizado pela própria Teresa Guilherme: programa e intervalo confundem-se.

Como se não bastasse, e dado que a audiência do programa vai resvalando, tornando-o por isso mais caro, a RTP1 fez na sexta-feira um programa de uma hora dedicado... ao 1,2,3!, com visita guiada aos "locais" onde "a Teresa" e os concorrentes fazem isto ou aquilo, como se fosse uma peregrinação a Jerusalém ou a Meca.

Os actuais concursos da RTP1 revelam as incongruências do entretenimento no serviço público. O SMS é um programa adequado para os jovens e promove a emulação do estudo e do conhecimento através do jogo, mas é apresentado por Serenela Andrade, sem empatia com o género e com os jovens.

O Preço Certo em Euros representa o nível inferior mínimo abaixo do patamar subterrâneo do que se possa chamar o mais básico serviço público.

O Quem Quer Ser Milionário arrasta-se com perguntas inanes que ocupam quartos de hora à vez, com concorrentes tantas vezes ignaros em busca de prémio como na lotaria e um apresentador que gere de maneira estranha as suas ajudas subjectivas aos concorrentes.

E, agora, chega o 1,2,3 que, na relação com qualquer conceito abrangente de serviço público, desce abaixo do Preço Certo, pois tal é sempre possível.

O 1,2,3 não significa um regresso a uns míticos "tempos áureos" da RTP1, significa o êxito duma corrente que defende uma televisão pública do género do pior se fez e se faz na Europa.

* * *

O enterro de Yasser Arafat em Ramallah proporcionou das mais fortes imagens televisivas do ano. Inúmeros órgãos de informação consideraram a cerimónia em Ramallah um "caos".

Que vimos? A multidão expectante, Arafat descendo dos céus, regressando ao pó da terra, a multidão aproximando-se do caixão, tocando-o, tiros para o ar, o caixão desviado de um edifício com líderes dentro directamente para a cova, o ritual religioso, a multidão a dispersar. Onde está o caos quando tudo acaba bem?

No Médio Oriente tem sido assim. E Arafat mostrou depois de morto as suas três vidas, a enigmática (de que morreu, afinal?) a de estadista (cerimónia no Cairo) e a popular (Ramallah). Havia a possibilidade do caos, mas essa há sempre, mesmo na hiperdefendida e organizadinha cerimónia do Cairo: bastava, aí, um tiro. Em Ramallah caiu um bancada, houve feridos, houve tiros, e não resultou caos. O que se viu foi uma multidão de povo que se apropriou do seu morto. A multidão estava ali e agiu porque seria inaceitável que Arafat não tivesse uma derradeira homenagem popular. A multidão portou-se como se sabe que se comporta uma multidão daquelas: sem problemas.

A doença e a morte de Arafat, longe da sua terra e sem que alcançasse a vitória final, instituíram a tragédia no mundo real, tal como a morte de Theo van Gogh, vítima da sua liberdade criativa e da dos seus assassinos. As duas mortes, de Arafat e van Gogh, originaram duas tragédias televisivas.

No caso de Arafat, a televisão apropriou-se da morte anunciada por amor à tragédia e ao melodrama com que a pinta nos dias de hoje. Sim, deu importância ao evento, fechava-se um capítulo da História. Mas, antes, a nossa televisão postou-se à porta do hospital parisiense como se postou há meses à beira do golfinho bebé do Zoomarine.