Eduardo
Cintra Torres
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Generalistas e Temáticos |
Foi para não haver intervalos nos filmes como nos canais generalistas comerciais, privados ou do Estado, que começaram os canais temáticos de cinema. Agora, por um punhado de dólares, o Hollywood renunciou à sua identidade de canal temático e adoptou uma estratégia da televisão generalista. * * * Durante dias, a TV massacrou-me com expectativas sobre o discurso do ministro Bagão Felix. Hora a hora, os noticiários fizeram-se agenda do Governo: o ministro falará depois de amanhã... o ministro falará amanhã... falará hoje... fala daqui a bocadinho... ai que está quase... Parecia a mãe para o filho: ó Zé, não te esqueças que na terça tens médico. Ó Zé, não te esqueças que amanhã vais ao médico. Ó Zé, olha que a consulta é logo. A esmagadora maioria das notícias sobre o discurso de Felix não tinha conteúdo noticioso para além do agendamento. E, depois, o discurso. Em directo, em três canais generalistas, o ministro fez o mesmo que os jornalistas: limitou-se a falar de expectativas a respeito do orçamento de 2005. Avisou que a austeridade continuará, mas não anunciou nada de concreto. Nesse sentido, pela ausência de conteúdo de acção governativa, pode considerar-se, em termos técnicos de análise de comunicação, que o discurso televisivo de Félix foi uma peça de propaganda. * * * Para cobrir os congressos dos dois grandes partidos americanos, a TV generalista americana optou pela primeira vez por reduzir as transmissões a uma hora diária. Com razão: os congressos deixaram de ter "suspense" e são coroações sem debate de candidatos há muito escolhidos. Por ironia, a transformação dos congressos em comícios sem combate deveu-se à cobertura televisiva. Os primeiros congressos transmitidos pela TV dos EUA americana foram os de 1952. Considerou-se então um "milagre" que a arena política entrasse em casa dos cidadãos. Por isso mesmo, para não ser vista, a arena mudou. De lugar de debate, os congressos passaram a entretenimento e tempo de antena para toda a América ver. A audiência foi-se desinteressando. Tem acontecido o mesmo em Portugal. Os congressos estão domesticados. Nos primeiros anos da democracia tinham momentos de alternância épica e cómica, uma animação. É natural que o cidadão não se interesse por congressos sem luta. Se há, cresce a atenção, como nas eleições no PS, cujos debates, episódios e programas têm sido acompanhados pelos principais canais, nomeadamente na SICN, com evidente vantagem para a cidadania e a audiência. Tendo em conta a mudança de natureza das reuniões magnas dos partidos norte-americanos e tendo em conta as audiências dos congressos anteriores, a TV considerou que perderia negócio se lhes dedicasse demasiado tempo. Desta vez enganou-se. Julgou que o público ignoraria as coroações de Bush e Kerry. Ora nem sempre se sabe o que o público quer. Na ausência de cobertura nos generalistas, o público saltou para os canais temáticos de informação, como a Fox e a CNN. O correspondente do PÚBLICO em Nova Iorque, Pedro Ribeiro, citava em 07-09 um ex-colaborador de uma cadeia generalista: "Nunca deixa de me espantar como as 'networks' racionalizam o seu declínio." De facto, a TV generalista tenta justificar publicamente a sua constante perda de audiências. Enquanto for um importante negócio, haverá essas "racionalizações do declínio". Apesar de a TV temática já ter mais audiência, a TV generalista permanece o media que reúne mais pessoas ao mesmo tempo, pelo que é um local privilegiado para a publicidade. Mas o que sucedeu com os congressos dos dois partidos é mais do que um sinal entre muitos, pois a cobertura das convenções fazia parte da história, do mito e da auto-importância da TV generalista. * * * A SIC lança em breve mais um canal, a SIC Comédia. A Alta (?) Autoridade (??) para a (???) Comunicação (????) Social (??!!!!) impediu a transformação do SIC Gold em SIC Comédia, levando a operadora a solicitar uma licença para um novo canal. A decisão será legalista, mas desadequada. O público não quer ver a SIC Gold porque o canal não tem arquivo suficiente para manter uma programação nacional interessante. Pior que a SIC Gold só mesmo o canal das televendas da TV Cabo. Logo, justifica-se que, ao serviço da audiência, o canal acabasse e fosse substituído. A SIC Comédia poderá ser uma boa aposta, mas também poderá matar a galinha dos ovos de ouro que a SIC soube criar nos últimos anos em vários registos de humor, desde o humor porno (Herman SIC) à "stand-up comedy" inovadora para o nosso mercado (Levanta-te e Ri), passando pelas anedotas populares (Malucos do Riso). Veremos se o novo canal servirá para apoiar projectos existentes e acarinhar novos projectos no canal generalista ou se, pelo contrário, esgotará o filão. A SIC foi a primeira empresa a construir um conjunto de canais interessantes no conceito e com êxito de audiências. Mas a situação destes canais é paradoxal, pois cada espectador que conquistam é em parte roubado à SIC generalista. A lógica aritmética diz que tal não é negativo, pois o que sai por um lado entra por outro. Mas nem sempre os negócios são lógicos. O contrato da SIC com o principal operador de cabo, a PT, prevê que esta pague à SIC uma renda fixa por cada canal. Entretanto, é a PT que explora a publicidade dos canais. Desta forma, a SIC perde dinheiro se os seus espectadores passarem da SIC generalista para os canais temáticos da própria SIC. É um absurdo, mas é a consequência de a SIC ter optado por este tipo de contrato seguro com a PT. Estas duas formas de gestão capitalista (uma submetida à lei das audiências, outra à "lei das rendas") contradizem-se. Em consequência, enquanto na SIC generalista os orçamentos se adaptam às receitas da publicidade (às audiências) os canais por cabo da SIC não vêem os seus orçamentos aumentados porque tanto faz para o proprietário, em termos de negócio, que tenham mais ou menos audiência. Perdem os mais fracos, os canais temáticos. A SIC Notícias tem cada vez mais audiência mas está com uma programação cada vez mais pobre por falta de dinheiro. A SIC Radical tem um projecto consistente com o melhor "talk-show" (Cabaret da Coxa) e bons programas de humor, mas o seu orçamento é ridículo. O arranjo entre a PT e a SIC, duas empresas capitalistas e privadas, parece o arranjo entre a RTP e o Estado no tempo da taxa. O Olho Vivo regressa a 11 de Outubro |