Eduardo Cintra Torres

Generalistas e Temáticos


O canal de cinema por cabo Hollywood começou a interromper os filmes para publicidade. Os intervalos são curtos e de duração anunciada, mas isso não diminui o choque da alteração. O Hollywood rasgou o contrato mediático que tinha com os espectadores. Esse contrato é o dos canais temáticos de cinema em TV: os filmes não são interrompidos; os anúncios são colocados entre os filmes.

Foi para não haver intervalos nos filmes como nos canais generalistas comerciais, privados ou do Estado, que começaram os canais temáticos de cinema. Agora, por um punhado de dólares, o Hollywood renunciou à sua identidade de canal temático e adoptou uma estratégia da televisão generalista.

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Durante dias, a TV massacrou-me com expectativas sobre o discurso do ministro Bagão Felix. Hora a hora, os noticiários fizeram-se agenda do Governo: o ministro falará depois de amanhã... o ministro falará amanhã... falará hoje... fala daqui a bocadinho... ai que está quase... Parecia a mãe para o filho: ó Zé, não te esqueças que na terça tens médico. Ó Zé, não te esqueças que amanhã vais ao médico. Ó Zé, olha que a consulta é logo. A esmagadora maioria das notícias sobre o discurso de Felix não tinha conteúdo noticioso para além do agendamento.

E, depois, o discurso. Em directo, em três canais generalistas, o ministro fez o mesmo que os jornalistas: limitou-se a falar de expectativas a respeito do orçamento de 2005. Avisou que a austeridade continuará, mas não anunciou nada de concreto. Nesse sentido, pela ausência de conteúdo de acção governativa, pode considerar-se, em termos técnicos de análise de comunicação, que o discurso televisivo de Félix foi uma peça de propaganda.

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Para cobrir os congressos dos dois grandes partidos americanos, a TV generalista americana optou pela primeira vez por reduzir as transmissões a uma hora diária. Com razão: os congressos deixaram de ter "suspense" e são coroações sem debate de candidatos há muito escolhidos.

Por ironia, a transformação dos congressos em comícios sem combate deveu-se à cobertura televisiva. Os primeiros congressos transmitidos pela TV dos EUA americana foram os de 1952. Considerou-se então um "milagre" que a arena política entrasse em casa dos cidadãos. Por isso mesmo, para não ser vista, a arena mudou. De lugar de debate, os congressos passaram a entretenimento e tempo de antena para toda a América ver. A audiência foi-se desinteressando.

Tem acontecido o mesmo em Portugal. Os congressos estão domesticados. Nos primeiros anos da democracia tinham momentos de alternância épica e cómica, uma animação. É natural que o cidadão não se interesse por congressos sem luta. Se há, cresce a atenção, como nas eleições no PS, cujos debates, episódios e programas têm sido acompanhados pelos principais canais, nomeadamente na SICN, com evidente vantagem para a cidadania e a audiência.

Tendo em conta a mudança de natureza das reuniões magnas dos partidos norte-americanos e tendo em conta as audiências dos congressos anteriores, a TV considerou que perderia negócio se lhes dedicasse demasiado tempo. Desta vez enganou-se. Julgou que o público ignoraria as coroações de Bush e Kerry. Ora nem sempre se sabe o que o público quer. Na ausência de cobertura nos generalistas, o público saltou para os canais temáticos de informação, como a Fox e a CNN.

O correspondente do PÚBLICO em Nova Iorque, Pedro Ribeiro, citava em 07-09 um ex-colaborador de uma cadeia generalista: "Nunca deixa de me espantar como as 'networks' racionalizam o seu declínio." De facto, a TV generalista tenta justificar publicamente a sua constante perda de audiências. Enquanto for um importante negócio, haverá essas "racionalizações do declínio". Apesar de a TV temática já ter mais audiência, a TV generalista permanece o media que reúne mais pessoas ao mesmo tempo, pelo que é um local privilegiado para a publicidade. Mas o que sucedeu com os congressos dos dois partidos é mais do que um sinal entre muitos, pois a cobertura das convenções fazia parte da história, do mito e da auto-importância da TV generalista.

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A SIC lança em breve mais um canal, a SIC Comédia. A Alta (?) Autoridade (??) para a (???) Comunicação (????) Social (??!!!!) impediu a transformação do SIC Gold em SIC Comédia, levando a operadora a solicitar uma licença para um novo canal. A decisão será legalista, mas desadequada. O público não quer ver a SIC Gold porque o canal não tem arquivo suficiente para manter uma programação nacional interessante. Pior que a SIC Gold só mesmo o canal das televendas da TV Cabo. Logo, justifica-se que, ao serviço da audiência, o canal acabasse e fosse substituído.

A SIC Comédia poderá ser uma boa aposta, mas também poderá matar a galinha dos ovos de ouro que a SIC soube criar nos últimos anos em vários registos de humor, desde o humor porno (Herman SIC) à "stand-up comedy" inovadora para o nosso mercado (Levanta-te e Ri), passando pelas anedotas populares (Malucos do Riso). Veremos se o novo canal servirá para apoiar projectos existentes e acarinhar novos projectos no canal generalista ou se, pelo contrário, esgotará o filão.

A SIC foi a primeira empresa a construir um conjunto de canais interessantes no conceito e com êxito de audiências. Mas a situação destes canais é paradoxal, pois cada espectador que conquistam é em parte roubado à SIC generalista.

A lógica aritmética diz que tal não é negativo, pois o que sai por um lado entra por outro. Mas nem sempre os negócios são lógicos. O contrato da SIC com o principal operador de cabo, a PT, prevê que esta pague à SIC uma renda fixa por cada canal. Entretanto, é a PT que explora a publicidade dos canais. Desta forma, a SIC perde dinheiro se os seus espectadores passarem da SIC generalista para os canais temáticos da própria SIC. É um absurdo, mas é a consequência de a SIC ter optado por este tipo de contrato seguro com a PT.

Estas duas formas de gestão capitalista (uma submetida à lei das audiências, outra à "lei das rendas") contradizem-se. Em consequência, enquanto na SIC generalista os orçamentos se adaptam às receitas da publicidade (às audiências) os canais por cabo da SIC não vêem os seus orçamentos aumentados porque tanto faz para o proprietário, em termos de negócio, que tenham mais ou menos audiência. Perdem os mais fracos, os canais temáticos. A SIC Notícias tem cada vez mais audiência mas está com uma programação cada vez mais pobre por falta de dinheiro. A SIC Radical tem um projecto consistente com o melhor "talk-show" (Cabaret da Coxa) e bons programas de humor, mas o seu orçamento é ridículo. O arranjo entre a PT e a SIC, duas empresas capitalistas e privadas, parece o arranjo entre a RTP e o Estado no tempo da taxa.

O Olho Vivo regressa a 11 de Outubro