Eduardo
Cintra Torres
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Outfoxed: Desfigurando a Realidade Desfigurada (2) |
O Daily Show é basicamente liberal, mas não poupa os democratas. As "reportagens" realizadas na convenção desse partido em Boston foram hilariantes na denúncia da vacuidade dos actuais congressos partidários. Ao contrário do que sucede noutros talk-shows cómicos americanos, aqui as sátiras têm a assinatura dos seus excelentes "repórteres", como o cara de pau Stephen Colbert e o indignado "comentarista" Lewis Black. O "momento de zen" fecha o programa, permitindo ao espectador revisitar imagens de realidade mostradas antes, convida-os a iluminarem o pensamento reflectindo sobre o seu significado. Zen funciona como sinónimo de análise vernácula. O momento de zen resume a essência do programa, dado que, sátiras à parte, o Daily Show faz amiúde de aula prática de análise de imagens, de agenda setting ou de propaganda. Num programa recente, mostrou um jornalista doutro canal junto da Casa Branca usando várias vezes a expressão de que George Bush "está na ofensiva". A reprodução e comentário satírico de Stewart permitiam compreender que o jornalista estava a apresentar não o seu ponto de vista mas a tentar impor na opinião pública uma mensagem dos serviços de marketing político do presidente americano. Noutro caso, o Daily Show reproduzia extractos de cinco programas de informação de vários canais nos quais cinco comentadores usavam exactamente as mesmas expressões para caracterizar a dupla Kerry-Edwards ("demasiado fora da posição consensual", "demasiado liberais"). Uma vez mais, podia desconfiar-se da existência duma central de comunicação republicana com capacidade de passar mensagens e introduzi-las na temática da opinião pública ("agenda-setting"). Quer no Daily Show quer noutros media americanos, chegou agora uma contra-ofensiva dos "liberals" sobre os "conservatives". Durante algum tempo a esquerda americana (chamemos-lhe assim) viveu um certo torpor de perplexidade perante o aparecimento, ou reaparecimento, de um marketing político eficaz dos republicanos. Depois dos anos Reagan, um intervalo no predomínio dos liberais nos media, o período Clinton tinha conseguido retomar o velho desequilíbrio nos media, geralmente inclinados para os democratas. A chegada de Bush e o pós-11 de Setembro mostraram que os dois campos políticos têm agora as mesmas armas. Os liberais não estavam preparados para a existência de um canal de TV ostensivamente conservador, como a Fox News. Viviam no doce remanso de media que lhes eram favoráveis ou neutros. No actual contra-ataque incluem-se os documentários de M. Moore, "Fahrenheit 9/11", e de Robert Greenwald, "Outfoxed" (DVD, 2004). Outfoxed: Rupert Murdoch's on Journalism tem uma enorme vantagem sobre o filme de Moore: é um documentário rigoroso e focado na investigação de um tema. Ouviu antigos responsáveis ou colaboradores da Fox News, especialistas da sociedade civil (liberais) e passou a pente fino muitas horas de emissão do canal. Além disso, criou um painel de cidadãs que acompanhou determinados segmentos do canal durante diversas semanas. Foi uma forma engenhosa de transferir a análise da linguagem e processos da Fox News para pessoas comuns, obrigando-as a desenvolver, como reconhecem algumas, ferramentas de literacia audiovisual. Foram elas próprias que fizeram análise de conteúdo das emissões, tomando nota de frases, palavras e processos usados pelo canal. E chegaram ao zen, pois da análise chegou a luz desejada pelo documentarista. O que ressalta do documentário é a fortíssima orientação política da Fox News, que vai ao detalhe da mensagem diária das chefias para os jornalistas, sugerindo temas e abordagens a fazer ou evitar. Ressalta também a pesada dimensão do comentário no fluxo do canal (sem acesso à Fox não me é possível verificar se há algum exagero nesta avaliação). Alguns segmentos mostram a violência verbal do apresentador Bill O'Reilly, que manda calar aos gritos os seus próprios convidados, e o desequilíbrio existente entre pontos de vista de esquerda e direita. Como o documentário, forças políticas e da sociedade usam este flagrante desequilíbrio para procurar agora impedir legalmente que o slogan do canal seja "justo e equilibrado". Tal como o Daily Show, Outfoxed analisa alguns exemplos de forma expedita, convidando os espectadores à descodificação vernácula, cada vez mais urgente num mundo ensopado de mensagens mediáticas. Outfoxed omite o êxito do canal de Rupert Murdoch, sintoma de que uma parte da população americana se sente mais representada nos seus pontos-de-vista conservadores com a Fox do que com outros canais. A Fox foi a última a chegar e tem quase o dobro da audiência do CNN e mais do quádruplo da MSNBC. O documentário omite razões para o êxito do canal: tem jornalistas e profissionais experientes, como o seu responsável, Roger Ailes; é extremamente apelativo em termos de grafismo, movimento e cor, à semelhança doutro canal de Murdoch, a Sky News. Tal como Moore demoniza Bush, Outfoxed demoniza Murdoch. Fala do gigantismo do seu império, mas omite deliberadamente a dimensão industrial e capitalista da TV e do entretenimento em geral, em que os liberais e o próprio realizador, que trabalha em Hollywood, se incluem. A Fox News não é apenas um canal de notícias conservador, é também entretenimento. "A televisão é um meio de entretenimento", disse recentemente Ailes. A Fox News entretém as donas de casa e os reformados, que são quem mais vê TV e contribui para boas audiências. E o que quer ver uma parte importante dos reformados senão a realidade transformada em entretenimento de direita num canal que nunca deixa a realidade tornar-se aborrecida? O Murdoch da Fox News pró-Bush é o mesmo Murdoch que apoiou abertamente os trabalhistas britânicos de Tony Blair. Quando Outfoxed retira como conclusão que o estilo da Fox visa criar medo nos espectadores e resume essa estratégia à frase "O medo vende", acentua a palavra "medo" quando seria igualmente razoável acentuar a palavra "vende". No dia em que a audiência estiver farta de comprar medo, a Fox News mudará de registo. Porque as notícias são negócio e não apenas para os conservadores. De qualquer forma, é significativo que a descodificação de mensagens mediáticas já seja hoje o tema de diversos conteúdos de êxito dos próprios mass media. |