Eduardo Cintra Torres

"Daily Show": Desfigurando a Realidade Desfigurada (1)


O mundo continua cheio de ficção nas salas de cinema e nas livrarias, mas a ascensão da realidade a barro primordial da criatividade e da comunicação parece imparável. A liberdade de comunicar e informar juntou-se às capacidades técnicas de recolha e divulgação de palavras, sons e imagens, permitindo ao mundo um acesso instantâneo e em barda à incrível, surpreendente, divertida, ofensiva, horrível, bela, carinhosa, real realidade.

Aumentou ao infinito o que se pode mostrar, diminuiu o que não se pode mostrar. Sexo, violência, morte, humilhação, sentimentos, surpresa: está tudo na televisão. Os mitos são menos urgentes para se dizer o que se pretende, basta mostrar casos da vida que ocorrem aqui e ali. Já não são os mitos que nos ensinam a realidade, são os casos da realidade que confirmam os mitos.

Para quê criar cenários fantasiosos, se a realidade fornece tantos motivos de interesse? Com fúnebre seriedade, o escritor V. S. Naipaul disse há dias que se enganou ao pensar que "a literatura era eterna e necessária". Acrescentou: "Pensei que sim, por nos dar uma ideia de onde estamos no mundo, de quem somos e do que é bom e mau no comportamento humano. Mas agora já não há lugar para isso. Há demasiada televisão. Desgastou-se a arte de contar estórias, personagens e tudo isso. Veja um país como a França: a literatura ali acabou. E eles são felizes. Não precisam dela."

Com esta invasão da realidade através da TV "em excesso" chegou, porém, a crescente possibilidade de se compreender que ela, a realidade, nos é apresentada nos "media" com filtros poderosos: o filtro do amor, o filtro do ódio, da propaganda, do "agenda setting", da conta bancária, das ideologias, do nacionalismo, do patriotismo, do "marketing", dos interesses, da incompetência, dos partidos, etc. É tanta a mediação quanta a informação que nos chega, e com elas acaba por chegar a percepção de que não há inocência nas notícias. Olho um telejornal e penso: "'Eles'" podem estar a enganar-me."

Os espectadores tornam-se mais activos: não só interpretam o evento do mundo real relatado pela notícia, como interpretam a própria notícia. Chegou a literacia audiovisual vernácula. Saiu da universidade, do gabinete, agora todos a podem desenvolver e usar. E, se não a usam, outros o fazem por eles: a interpretação, a descodificação de notícias e imagens vai fazendo parte da própria produção audiovisual.

Sendo a TV o principal meio de difusão da realidade e de (re)construção dessa realidade, e sendo um negócio de milhões, não tem sido fácil no seu seio o caminho da desmontagem dos seus processos comunicativos. A televisão não quer que a gente afaste a cortina e veja o mágico de Oz ao microfone. Perdia-se a magia, e o medo.

Em Portugal já há programas baseados na desconstrução do discurso político e mediático, como o Gato Fedorento e a Megera TV (SIC-R), este utilizando a linguagem dos "media" para gozar com facetas da realidade, o Gato usando-a para a estilhaçar ao ponto de a transformar num "nonsense" e no mais risível ridículo.

Na SIC Radical passaram ou passam outros dois exemplos, os notabilíssimos Da Ali G Show e Daily Show with Jon Stewart. Ali G é o alter-ego "hip-hop" do humorista britânico Sacha Baron Cohen. O que ele faz é de deixar o espectador petrificado antes de aderir e rir às gargalhadas. Com a sua vestimenta e linguagens gestual e verbal do "hip-hop", o incrível Ali G entrevista personalidades famosas sem que estas se apercebam, durante algum ou todo o tempo, que se trata de uma gozação. Será que não chegam a perceber a sátira? Cohen é um improvisador notável e diz barbaridades de alta comicidade: entrevistador ignorante de linguagem forte, Ali G usa ao mesmo tempo uma ingenuidade e uma simpatia desarmantes. É um simples dos tempos modernos.

Cohen assume ainda as personalidades de Borat, um repórter da TV do Cazaquistão, e do arrogante repórter de moda austríaco Bruno. São, pois, três personagens cómicos que se inscrevem na realidade da linguagem televisiva e pelo caminho fazem um humor delirante. Nem por acaso, Cohen foi há pouco tempo entrevistado por Jon Stewart no Daily Show, do Comedy Channel.

O Daily Show é um dos melhores programas que passam actualmente na televisão portuguesa. Tem quatro edições semanais e cerca de 160 episódios anuais. Por vezes, entra em pousio uma ou duas semanas: bem se vê que descodificar a realidade é trabalhoso e cansativo. Passa na SIC-R diariamente e, como convém, à hora dos nossos intermináveis telejornais (20h30). A versão internacional semanal no CNN é menos interessante.

O programa veste-se de noticiário. O estúdio imita os das notícias, o genérico usa a imagem da Terra como metáfora visual para a habitual simulação de que os noticiários de TV são "uma janela para o mundo". E até o indicativo musical começa com acordes dramáticos típicos de telejornais, para logo se lhes juntar a melodia, pelas trompetes, convidando à sobreposição da comédia sobre o tom de notícias. O programa é formado por "manchetes", "outras notícias", reportagens dos seus "correspondentes", entrevistas e, no final, o já famoso "momento de zen".

Mas o Daily Show autodefine-se "noticiário satírico", o que faz todo o sentido. A sátira é neste caso um modo de expressão audiovisual aplicado à crítica da realidade. Expõe as debilidades e erros de pessoas, instituições e sociedades. No Daily Show, os alvos primordiais são os políticos e a linguagem e conteúdo dos noticiários da TV generalista (ABC, CBS, NBC) e dos canais noticiosos de cabo (MSNBC, CNN e Fox).

O tom satírico vai do divertimento tolerante à indignação face às realidades e construções jornalísticas denunciadas.

A sátira na poesia e na prosa jornalística pode ser frustrante, pois não tem por norma a análise crítica e não apresenta saída alternativa à feia realidade que põe a nu. No caso do Daily Show, essa frustração é dada por Jon Stewart quando fica sem palavras (está a representar, claro; ele é actor de origem). Mas, como a frustração não convém a um programa que precisa de audiência no dia seguinte, é através da mistura de géneros cómicos que o Daily Show sobrevive ao veneno da sua própria sátira mortífera e faz da realidade algo de suportável.

Stewart é notável como apresentador. Adopta o registo mínimo (amável) ou máximo (indignação) conforme as necessidades do segmento, recorre a uma ampla gama de comunicação não verbal, improvisa notavelmente e faz entrevistas sérias ou delirantes aos seus convidados, mas um pouco mais consistentes do que as que vemos noutros "talk-shows" nocturnos da televisão americana.