Eduardo Cintra Torres

Uma Tia de Serviço Público


A TVI apresentou uma reportagem especial sobre a personagem mediática Cinha Jardim (06.08). Em meia hora de prime time, reforçava-se o nosso conhecimento da «conhecida» (passe o pleonasmo), assim inculcando valores ideológicos a seu respeito. O título tinha um toque modernista: «A Nova! Tia Cinha». A reportagem justificava-se comercialmente por ser Jardim nos últimos meses assídua no canal. Por isso, e por ter feito uma plástica, está «nova». Exclamação.

Trata-se dum trabalho jornalístico da actual fase do entretenimento. Apesar de procurar ater-se ao registo factual, a função informativa submetia-se à lúdica.

Jardim fez em 2002 o rito de passagem da sociedade do espectáculo que lhe permite agora arrecadar popularidade e o que mais vier numa TV popular. Ao lavar chão na «casa» do «Big Brother Famosos», a suposta «tia» provava à audiência que era uma pessoa vulgar, assim limando arestas no ressentimento de classe contra ricos e poderosos.

A reportagem da TVI, não tendo interesse como objecto televisivo, tinha-o para estudo social deste novo e vernáculo uso imoderado das tias. Mostrava a construção que se vem fazendo do conceito de «tia» para consumo popular. A expressão «tia» começou a ser usada na classe alta e média como forma de tratamento das mães dos amigos ou amigas. Não havendo relação familiar, a palavra facilita o tratamento, em substituição do demasiado próximo nome próprio ou de um demasiado afastado título social («Senhora», «Dona», Doutora», etc.). Com o uso de «tia», cria-se uma relação de círculo social fora do círculo conjugal do lar. É um jargão classista como qualquer outro: quando «menino» e «tia» se cumprimentam estão dizendo «somos cá dos nossos».

As formas de tratamento de uma sociedade e de uma época são uma confissão da teia de relações entre as pessoas. Quanto mais complexa a sociedade, mais complexas as formas de tratamento. É o caso português.

Desde há anos, «tia» passou a usar-se para definir a mulher de determinado estatuto económico-social e com presença regular nas festas e outros eventos que aparecem em revistas. Deixou de ser um tratamento usado num certo extracto social para passar a ser sinónimo desse mesmo grupo social. Mas, hélàs, como sempre acontece na burguesia, há traidoras de classe. A forma de tratamento foi usurpada.

Tal como grande parte da «aristocracia europeia» é hoje uma marca que se vende como qualquer mercadoria, também certas «tias» e o falso jetset portugueses são uma marca destinada à venda em imprensa e alguma TV. Estão fora do círculo social que supostamente representam. Isso fica claro quando a reportagem mostra Jardim aparecendo numa festa com a câmara da TVI ou explicando a construção da sua imagem para ser consumida como um produto. Percebe-se que a titização é menos uma maneira de estar na vida do que uma maneira de ganhar a vida.

Todavia, não se divulga nenhum aspecto da transacção comercial do produto «tia». Apesar de alguém definir Jardim no programa como pessoa «super-ocupada», só se revelam aspectos supostamente glamorosos. Ela está «ocupada» em vender a imagem como produto social e mediático, essa é a profissão.

A construção da imagem de Jardim passou, como referi, pelo alargamento da sua «base social de apoio» participando no BB Famosos. Com as suas rugas de expressão, apresentou uma máscara de super-simpática, super-disponível, amiga de toda a gente. «A Cinha tem este talento de fazer amigos», diz um fotógrafo do «social». Podia ser um curso de Dale Carnegie: como fazer amigos e influenciar pessoas. Neste caso, ter «amigos» significa estar disponível para aparecer em festas, assim lhes garantindo influência mediática, isto é, valorização social.

O rito de passagem permitiu a Jardim alargar a capacidade de mercantilização da sua pessoa em programas populares de TV. Uma frequentadora da festa em que Jardim aparece na reportagem diz que ela é «extremamente humana» com gente de todas as classes, «ela é assim nas festas e é assim na rua» - na rua, onde fala à gentinha.

Na mesma festa, alguém vai mais longe nesta sublimação da luta de classes através da simpatia da «tia» que foi ao BB passar a ferro: ela «é um bocadinho a nossa princesa do povo sem precisar de trono». E como os leitores de revistas cor-de-rosa gostam de «se rever com as pessoas que lá aparecem», Joana Lemos não tem dúvidas em elevar a função de Jardim à categoria de missão político-social: «palavra de honra, acho que isto é quase serviço público».

Assim justificada a personagem com esta bateria de sólida argumentação ideológica, a reportagem da TVI avança para aspectos práticos. «É natural», refere, que ir a tantas festas «provoque algum desgaste». Daí a necessidade da operação plástica tão comercializada na imprensa especializada. O cirurgião plástico que operou Jardim vende lifts a prestações, mas isso não é referido na reportagem.

Cinha Jardim quer sentir-se bem «consigo própria», mas a operação é também uma obrigação social: «as pessoas exigem de mim eu estar sempre bem». Mas, cuidado, a operação não poderia cortar-lhe «as rugas de expressão». Daí que o cirurgião explique não ter feito «nada de agressivo». A própria mostrou o trabalho do bisturi com explicações sobre as suas pálpebras e lábio superior, que a câmara acompanhou com planos de pormenor, habituais em documentários científicos.

Nesta linha pedagógica, Jardim informa-nos que a recuperação da operação é «um bocadinho difícil» e explica como ultrapassá-la: «resolvi logo a questão com uma mudança de casa».

Diz que não quer ser olhada apenas como «uma personagem», mas o programa revelava a grande necessidade do lado comercial dessa personagem. Divulgava a clínica de cirurgia plástica, uma loja de roupa, o esteticista, o estilista e o cabeleireiro onde ela trata «sobretudo da alma».

Jardim faz o «serviço público» de ensinar à gentinha como supostamente são as coisas num escalão superior. A personagem é diferente da pessoa? Será que a tia é, primeiro, uma aparência de tia? A casa de Cinha é de uma grande pobreza. Vazia, pois a vida dela mostra-se nas festas. Será que o seu estatuto está só na pele dos media, na superfície de revistas e de écrãs?

Estamos num jogo de espelhos: Jardim tenta ser adoptada pelo «povo» das audiências para comercializar a representação dum papel social. Ao «povo» porventura interessa uma porta de acesso a um mundo que quer conhecer e com que quer gozar ou, de facto, sonhar.