Eduardo
Cintra Torres
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O Olho Vivo Foi ao Cinema Ver Televisão |
Fahrenheit 9/11 apresenta-se como documentário, quer dizer, um filme sobre um aspecto parcelar da realidade tratado pelo ponto de vista do seu autor. No caso, o ponto de vista de Moore é muito empenhado politicamente. Não interessa para a análise ser o filme liberal e anti-Bush. Interessa que desvirtua factos para construir uma narrativa que pode ser desmentida por outros factos. A quantidade de contradições e ilações precipitadas do filme é enorme. Esse desrespeito pela factualidade faz do filme menos um documentário do que um exercício de propaganda, não cinematográfico mas televisivo, e sem interesse estético. A Palma de Ouro de Cannes é por isso lamentável. Moore faz cinema de intervenção: se o filme ajudar a tirar Bush da Casa Branca, o objectivo foi cumprido. Mas ele é também um cineasta do sistema americano, pelo que o filme tem uma forte dimensão económica, interferindo na estética. Ao contrário da Europa, onde cineastas se apresentam como vítimas do sistema a que pedem subsídios mas fazem cinema, Moore, sem direito a subsídios, procurou uma via que lhe juntasse intervenção política e receitas: fez um filme televisivo, um "reality-cinema-TV" capaz de atrair pessoas à salas. É o mais interessante deste caso: Moore conseguiu os dois objectivos - propaganda anti-Bush e receitas - através da estética televisiva aplicada ao cinema. Fahrenheit 9/11 utiliza, uns atrás dos outros, os processos descritivos e narrativos da informação televisiva. Não me refiro apenas ao facto de mais de metade do filme serem excertos de material feito para televisão ou apresentados em canais de TV. Refiro-me ao recurso em exclusivo à linguagem da informação televisiva: - recurso esmagador de imagens televisivas de arquivo; - voz off que mistura factos e comentário; - insinuações na expressão verbal da voz-off, do próprio Moore; - montagem rápida de factos sem ligação entre si, criando uma ligação causal inevitável; - música como forma de comentário político às notícias; - entrevistas de rua ("voz populi") usadas como representativa do todo nacional; - uso de imagens fora do seu contexto ou mesmo em contexto abusivos; - introdução de incongruências no próprio texto de forma a servir a narrativa previamente estabelecida; - uso de depoimentos explorando as emoções de pessoas isoladas para motivar alterações de juízos racionais; - montagem caótica a partir das "imagens disponíveis"; - uso frequente e rápido de elipses (saltos no tempo) e analepses (flash-backs), de forma a que o espectador não note as incongruências; - recurso ao entretenimento humorístico dos noticiários televisivos, a "piada jornalística". Tal como na maior parte da informação televisiva, o mais importante não é o que há para mostrar mas o que Moore tem para ler em off: o seu discurso, com uma carga ideológica evidente e exclusiva. Há apenas uma diferença de grau entre a TV e Moore quando este usa a linguagem televisiva para abusar dela com consciência e construir um discurso ideológico manipulado mas acessível a um grande público. A televisão generalista e noticiosa americana usou processos idênticos aos de Moore, mas ao serviço do bloco central da ocasião, a política de guerra de Bush apoiada por republicanos e democratas. Moore parece tomar o ponto de vista dos abandonados pelos políticos, os negros e o povo da sua Flint natal, onde os rapazes servem como carne para canhão nas guerras que "eles" cozinham para encherem os bolsos. O ponto de vista dos despossuídos de poder político, económico e mediático tem aspectos válidos e não pode ser rejeitado como populismo: não se pode chamar populismo a tudo o que está fora de um sistema político cuja representatividade se pode pôr em causa com argumentos válidos. Mas o que Moore faz é explorar esse ponto de vista num género televisivo a que se pode chamar "populismo tablóide de esquerda". Fahrenheit 9/11 não tem a seriedade que se espera de um autor, por mais válido que seja um ou outro ponto. Resta saber se este "filme televisivo" é o início de um novo género de êxito ou se é um epifenómeno resultante do aproveitamento por Moore do final do "estado de guerra" na sociedade americana. *** A cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos foi, do ponto de vista televisivo, espectacular, bonita e culta. O desfile histórico, de uma concretização formal irrepreensível, resultou original no ecrã: era ele que se movia, as câmaras estavam paradas. O formalismo da realização realçou o lado espectacular e cerimonial, contrastando com os nossos hábitos de visão de imagens filmadas por câmaras sempre em movimento quando não histéricas. Em geral, o estilo visual excessivo serve para compensar a ausência de verdadeiro material interessante para mostrar. Neste caso não era assim: a realização dispunha de um espectáculo grandioso, feito para falar em imagens (não eram precisas explicações, mesmo para quem não entendesse as referências culturais). Quando há material visual, a televisão não precisa de estilo excessivo. Mesmo assim, houve-o... nos comentários na RTP1 e no Eurosport em português. Era de tal forma inoportuno o excesso de comentário, e em altas vozes, na RTP1, que mudei para o Eurosport, onde o mesmo excesso de palavra e alguma impreparação eram compensados pelo facto de o apresentador não gritar. Há qualquer coisa que me impede de compreender esta insistência na verborreia dos comentadores quando não são precisos comentários porque imagens e sons são suficientes, seja neste tipo de cerimónias, seja por exemplo nas partidas de ténis da SIC (sendo talvez o único canal do mundo em que se comenta durante as jogadas). No caso da abertura dos Jogos , felizmente a cerimónia foi repetida sábado na RTP1 com comentários mais parcimoniosos: finalmente, usufruí do espectáculo. |