Eduardo Cintra Torres

TV, Megera Fedorenta


«Gato Fedorento» e «Megera TV» são programas de sketches cómicos, mas do campeonato oposto ao dos outros programas de humor portugueses. São feitos com poucos meios e para um canal de públicos específicos e abertos à novidade.

Ambos têm um ar amadorístico, que resulta das condições pobres em que são feitos, muito contrárias aos habituais cuidados da produção televisiva. São vendidos à SIC Radical abaixo do preço de custo.

Os dois autores da Megera fizeram o programa nos tempos livres. Gravaram os 13 episódios em 14 dias. Não têm formação de actores. Têm escassa experiência de TV. Os quatro autores do Gato Fedorento também não têm experiência de actores.

Paradoxalmente, o amadorismo singulariza os dois programas. Dá-lhes um tom marginal que favorece a empatia. Revela a urgência criativa. Sobressai o conteúdo sobre a forma. Permite aos autores escapar à ditadura do generalisticamente correcto, tantas vezes imposta pelos canais generalistas cientes do que julgam adivinhar sobre êxitos de audiência. A SICR é um abrigo para esta marginalidade - onde estar fora-da-lei significa estar à margem da ideologia da TV generalista.

Foi também a pensar neste tipo de programas ou de TV que aqui propus em 17.06.2002 como alternativa à RTP2 um canal aberto à experiência e à vanguarda, sugerindo que mesmo grupos de cidadãos pudessem enviar trabalhos que, escolhidos «em função de critérios de qualidade mínima de emissão», fossem apresentados a todo o país, «permitindo-se assim o acesso à TV de pessoas e grupos com valor». A 2: preferiu enveredar apenas pelo institucionalmente correcto. E as novidades vêm da SICR devido às apostas do seu director, Francisco Penim, e à boa-vontade da rapaziada do Gato e da Megera.

Se a fabricação é amadorística, o lado criativo não é. Ambos os programas se centram muito na linguagem televisiva. Ela está tão «naturalizada» que é às vezes difícil separar nestes programas o que são sketches em que a câmara está para gravar um suposto episódio da vida ou em que está para simular um suposto programa de TV. Há falsas entrevistas, debates, reportagens, programas desportivos, tele-escola, etc. Essa «naturalização» também permite que todos estes não-actores tenham momentos brilhantes de interpretação.

Herman José já usava a linguagem TV há duas décadas, e o Programa da Maria voltou a fazê-lo (SIC). No caso da Megera, há sketches muito divertidos em torno da linguagem televisiva como o «Bom Português», as entrevistas do «Portugal Prófundo», o excelente «Curso de Valorização Profissional: Como ser Mulher do Povo» ou o hilariante programa musical em que se inverte o «Vinho Verde» de Paulo Alexandre. O programa vive muito dos personagens criados pelos autores António Sousa e Carlos Gomes, este também realizador, produtor e criador da série. Algumas cenas não se relacionam com a linguagem televisiva e buscam antes o non-sense que denuncia a realidade, como a dos médicos incompetentes.

A Megera TV é uma lufada de ar fresco, com pessoas novas, novos humores e novo humor. A relação entre Gomes e Sousa é excelente (excelente demais, pois improvisaram mais do que está certo para um programa de TV gravado). Tal como no Gato, o humor é acessível mas ao mesmo tempo culto. As referências fazem parte do texto, são usadas ostensivamente para gozar com o discurso mediático da cultura, como no excelente sketch «Festival de Teatro de Camarote». No Gato essas referências estão mais camufladas ou integradas, permitindo que a descoberta da intertextualidade se torne um prazer para o espectador.

Embora menos, o Gato também revela o lado apressado e baratucho da produção. Mas é tal a criatividade que a forma é engolida pelo conteúdo. O Gato Fedorento é o melhor programa português de humor em muitos anos. Alguns sketches finalmente ultrapassam os velhos recordes olímpicos de Herman José nesta matéria.

O pequeno episódio «O homem a quem parece que aconteceu não se quê», a que já me referi, é dos melhores momentos de TV dos últimos anos. Num só plano, começa com a apresentação do tema por José Diogo Quintela, introduzindo a forma do jornalismo televisivo. Os personagens falam para a câmara como para uma reportagem informativa. A seguir, Ricardo Araújo Pereira cria em 1'23 um personagem popular que se indigna por coisas que nunca saberemos quais são. O texto é primoroso, a interpretação excelente (apesar de mini-hesitações). O sketch termina sem solução lógica, racional, como sucede nos sketches da Megera, que a procuram como epílogo, domesticando o humor anterior.

«O homem a quem...» e outras cenas do Gato são de uma enorme inteligência. São tão bem escritos que podem ser extremamente populares. O Gato conseguiu a proeza raríssima de se transformar num programa de culto, visto e revisto sem perder o interesse e a graça, com as suas frases repetidas por admiradores nos transportes públicos, escolas e locais de trabalho.

Os autores do Gato não reprimiram o que há de melhor no humor: o lado infantil, insolente, o nosso lado escondido que sempre resiste à normalização da vida adulta. O sketch «o engenheiro responsável por coisas» é aí exemplar, com a entrevista em que o entrevistado vai usando insolentemente frases e comportamentos das crianças.

O humor do Gato é extraordinário no uso e desmontagem da linguagem televisiva. Enquanto a Megera a usa para gozar com os caracteres populares ou intelectuais imitados, as cenas do Gato fazem o que se poderá chamar de televisão do absurdo: subvertem a realidade e a TV que a mostra, abusam dela, desrespeitam-na com insolência e muita graça.

É um processo irónico, uma recriação prática televisiva em comédia do milenar método argumentativo da reductio ad absurdum. Através da redução ao absurdo, leva-se ao extremo e ao ridículo determinados comportamentos e linguagens, nomeadamente de políticos, intelectuais e tipos populares tal como se expressam na restante televisão. A linguagem do debate político é sobreposta a dois candidados à presidência da associação do Bigode; a linguagem de moderadores e populares no «Forum TSF» e «Opinião Pública» (SICN) é aplicada num debate de filosofia («eu sou da Escola de Frankfurt desde pequenino, pá»). O Gato Fedorento estilhaça as linguagens, mas não se fica pelo nonsense, pelo disparatado sem sentido, antes cria o absurdo, que com sentido destrói o real. Não fica pedra sobre pedra.

Os autores do programa apanham tiques, géneros, estilos de pessoas e de programas, mas recriam-nos em sketches cuja força final vem da redução ao absurdo. Quando põem a nu a falsidade do real e a superficialidade do que o mundo nos apresenta como importante e o ridículo do que se apresenta como sério, chegamos a um ponto de criatividade televisiva invulgar. Que grande gozo à televisão!