Eduardo Cintra Torres

Ciência e Literatura em Imagens


O programa Megaciência (SIC, sábados) quis ser TV "popular de qualidade". Pressente-se a boa vontade de divulgar amplamente conhecimentos científicos. Mas é um talk-show. Tem dois apresentadores jovens, ele e ela, que debitam conhecimentos científicos enquanto curiosidades desligadas entre si, do tipo "acredite se quiser".

O cenário é igual aos de muitos talk-shows, com a sua banda de música, com a sua bancada para o gentil público, gente de meia idade e reformada que assim se entretém a passar a tarde e dando palmas às experiências científicas como se fossem truques de Luís de Matos.

Não é caso para menos. Domina no programa o ponto de vista da espectacularidade e da estranheza das leis científicas quando experimentadas. É o lado mágico: oh! Palmas para a lei da gravidade! Música para a tensão superficial! Palmas, caramba, para o sulfato de sódio!

O programa revela a dificuldade de transformar o conhecimento em imagens, a dificuldade de fazer televisão. Os apresentadores lêem no teleponto, rindo muito, as explicações científicas de factos que conhecemos do quotidiano, mas não se percebe nada. Têm de rir, porque a ciência num talk-show só pode ser divertida: ah!, ah!, a fórmula química da água! Que vontade de rir que dá a distribuição de peso! Ah! De certeza que o Newton era um bacano! E o da Vinci? Ganda maluco!

Este Megaciência não recorre ao entretenimento para divulgar ciência. Recorre à ciência para fazer entretenimento.

* * * O seriado da TV Globo "Os Maias" foi feita com grande empenho. Tem o formato da telenovela, melodrama organizado de casos de amor e desencontro em muitos episódios, cada um terminando num gancho de suspense, e com a sua estrutura concentrada mais nos dilemas do que nas soluções. Distingue-a de outras novelas o facto de não ter o final em aberto, como é hábito no género, por se tratar de uma transposição para o écrã do romance homónimo de Eça de Queirós.

A série de 48 episódios foi produzida pela Globo em 2000-1 no centenário da morte do escritor. O grande interesse e apreço pela obra de Eça no Brasil justificam que a Globo fizesse uma série de grande orçamento, em parte gravada em Portugal. Avaliando pelos primeiros episódios, o seriado tem grande apuro na adaptação, diálogo, construção dos personagens (o desenvolvimento de Maria Monfort, a mulher de Pedro da Maia, está primoroso), nos cenários portugueses e de estúdio, adereços, realização e interpretação. Estes "Maias" correspondem na produção latina ao que os ingleses chamam "costume drama", drama histórico, e cumprem a principal tarefa duma novela, que é o enlevo dos espectadores, mas sem que, até agora, transijam na boas qualidades dramatúrgicas da televisão.

Não abordo o tema da transposição do romance para o ecrã. Não apenas pelo facto de a SIC ainda só ter passado os primeiros sete episódios, mas porque se trata de uma questão complexa e que não se compadece com observações de gosto pessoal ou impressionistas, devendo ser apreciada com métodos analíticos rigorosos dos estudos literários, fílmicos e televisivos. Prefiro abordar algumas questões relacionadas com as condições da produção e consumo social dos "Maias".

Na adaptação para a TV, o interesse essencial dum romance é a narrativa. A adaptação prevê a fragmentação da narrativa de maneira a acomodá-la em inúmeros episódios. Ao contrário do leitor, que comanda o tempo de leitura, o espectador não comanda o consumo do seriado, tem de esperar pelos episódios, um a um. No caso dos "Maias", isso soma-se à triste circunstância de a SIC os apresentar mais de três anos após a estreia, em horários bizarros e num calendário selvagem.

O seriado está assim sujeito, depois de feito, a inúmeras contingências, apesar de a Globo ter envolvido centenas de pessoas na produção da transposição televisiva do romance e arriscado um orçamento de milhões de euros. O adiamento da apresentação na SIC desenquadrou o seriado do momento histórico da sua produção, o centenário de Eça, assim lhe roubando uma certa aura emocional que existe nestas ocasiões e que proporciona um interesse acrescido sobre a obra recordada.

A isto há que acrescentar que a versão dos "Maias" que a SIC apresenta não é a mesma que a Globo mostrou no Brasil: está cortada em várias horas (são agora 42 episódios). Os saltos na montagem são evidentes.

Os cortes feitos ao original ferem o carinho e o empenho profissional postos nestes "Maias". A versão mostrada retirou à transposição a sua "lentidão", quer dizer uma respiração dramatúrgica muito própria que era provavelmente a marca mais original do seriado e - continuo no domínio das hipóteses - onde a transposição procurava ir mais além do que a simples narrativa dos "Maias" de Eça.

Cortes, anos de atraso, horário louco, programação selvagem do seriado... A SIC desrespeita "Os Maias da Globo e de Eça, mas vai até onde o público a deixa ir.

"Os Maias" vêm dum Brasil onde uma elite forte (e queirosiana) desejou e fez o seriado e não permitiria maus tratos, se alguma vez eles existissem, ao amado romance. Em Portugal, a SIC maltrata "Os Maias" sem que houvesse ou haja qualquer reparo ou preocupação por parte das elites ou do público em geral.

A SIC pode mostrar os "Maias" cortados e a qualquer hora que lhe apeteça porque o público não exige diferentemente. A massa e as elites já deixaram ser ortodoxos no que toca à programação televisiva e muito menos no que toca às transposições literárias. Ninguém se rala.

Para muitos telespectadores portugueses, "Os Maias" não são a adaptação de um romance de Eça que se calhar nem sabem que existe ou apenas folhearam no ensino obrigatório; nem são necessariamente uma obra portuguesa, se bem que se passe em Portugal. E poderão nem ver o interesse histórico da série, porque os espectadores julgam que se lhes está falando deles mesmos e o que pedem é o quadro do presente.

O gosto pelas telenovelas baseia-se precisamente no gosto democrático pela mistura confusa de condições, sentimentos e ideias que encontram no seu dia-a-dia; é assim que a televisão se torna para elas mais audaz, mais vulgar e mais verdadeira. O estilo é, portanto, menos necessário na televisão do que na literatura, pois, no écrã, a observação das regras de estilo escapa muito mais à atenção.

A televisão abala ou anula as regras e as convenções literárias, mas os seus espectadores não estão preocupados com isso porque não são ao mesmo tempo leitores. Vêem novelas, não as lêem. Querem ser apanhados de surpresa pela impressão que lhes é sugerida pela narrativa, sem terem tempo para interrogar a sua memória, nem para consultarem maiores conhecedores da matéria. Não esperam encontrar uma obra literária, mas sim um espectáculo. Neste caso, nem isso a SIC lhes permite encontrar.