Eduardo Cintra Torres

Virtuosismo Vernáculo, Virtuosismo Artístico


u És a Nossa Fé", "filme comentário" de Edgar Pêra (2:, 2/7), mostra o futebol como devoção da nação. Lá estão os símbolos nacionais (bandeira e hino) numa final da Taça de Portugal no estádio que tem por nome Nacional.

A tese do futebol como religião constrói-se na insistência do cântico "és a nossa fé", nas poses religiosas dos adeptos, na vivência colectiva do evento como celebração religiosa, nos sons de missa católica em fundo ("penitência e oração...", "Senhor, tende piedade de nós"), na bola que um acrobata faz descer do Céu em helicóptero, no carinho de mães pintando filhos com cores do clube ou da bandeira pátria, assim os preparando para uma primeira comunhão.

O documentário é uma colagem complexa de imagens e sons das bancadas, claques, espectadores, penetras, vendedores, polícias. Jogadores actuais só aparecem fugazmente, para ilustrar a idolatria. Vemos mais os antigos, para não os reconhecermos, como símbolos em cromos, caricaturas, fotos de antigamente, santinhos ou super-heróis fotografados de baixo e em simetria.

A ligação do futebol à política é erradamente limitada por Pêra aos tempos de Salazar. Fê-lo por motivos estéticos, mas o filme omite que a elevação do futebol ao estatuto religioso ocorre na democracia laica e não na ditadura da Concordata. A fé deixou de ser monopólio da religião, tornou-se um valor laico que se insinua em todos os domínios e mistura todos eles como o cozido na panela. Na semana passada, um anúncio de TV do candidato americano John Kerry tinha por título "Fé", palavra que repetia várias vezes em contextos religiosos, laicos e dúbios: "A fé é um dos pilares da nossa cultura. Precisamos de um líder que se guie por esses valores."

O documentário de Pêra tem a multidão como guia e protagonista. Há muito que tal não acontecia no cinema. Quando havia multidões à séria, o cinema mostrava-as saindo das fábricas, manifestando-se contra o capital, tomando palácios, fervendo nas ruas, perdida nas grandes metrópoles, adorando a Deus ou saudando um ditador. Depois, desapareceram nos subúrbios e nos centros comerciais. Só se vêem em algumas actividades desportivas, musicais, religiosas - na televisão.

No filme de Pêra, as câmaras estão viradas para as bancadas. Outros filmes usaram a multidão para mitificar a tomada do poder ("Outubro", de S. Eisenstein, 1926), vangloriar um ditador ("O Triunfo da Vontade", de L. Riefenstahl, 1936), legitimar milagres (filmes sobre Fátima ou Lourdes), saudar a aliança salvífica do proletariado ao patronato ("Metropolis", de F. Lang, 1926) ou singularizar o indivíduo ("The Crowd", de K. Vidor, 1928).

O filme de Pêra vangloria a própria multidão. Só ela conta. Ela é vista positivamente, mesmo quando ululante, e não como um monstro assassino. Como no filme de Vidor, esta multidão é formada por indivíduos. Eles só querem apreciar o espectáculo, excitar-se um pouco, amar-se a si mesmos e a outros através do futebol, a nova religião. Os adeptos são aqui menos fãs do que fiéis. A palavra fã vem do inglês "fan", de "fanatic", e começou a usar-se nos EUA para os entusiastas do "basebol" no final do século XIX. Já fiéis é menos o plural de fiel do que o substantivo colectivo para o conjunto dos que seguem uma religião ou se congregam no templo. Neste caso, o Estádio Nacional. No filme, os fãs/fanáticos vivem o futebol como uma guerra, os fiéis vivem-na como uma religião.

Os fiéis são bons. Para quê a violência? Domina a imagem dialogante da autoridade: o plano mais longo do filme mostra um graduado conversando com um homem pendurado onde não devia; o polícia leva as mãos ao peito como quem diz: "Também eu sou bom como você, só cumpro ordens" - a polícia serve a multidão e a fé.

O filme quase não tem palavras, pois a multidão não tem muito para dizer, tem-se apenas a si mesma para mostrar. Os seus sons? "Slogans" e notas cantadas, desafinadas, gritadas. Nas patéticas recolhas de declarações que a TV faz a membros das multidões após uma vitória, como sucedeu no Euro 2004, as pessoas não têm nada para dizer, muitas nem conseguem articular palavras. Não porque o não saibam, mas porque estar numa multidão celebrante é uma acção sem palavras.

Em "És a Nossa Fé", a banda sonora é uma montagem singular de frases de relatos, dos cânticos católicos e futebolísticos, de insultos no estádio, de pregões de vendedeira, numa montagem independente mas síncrona com a das imagens. Para a eficácia da banda sonora, contribui a música de Vítor Rua, electrónica, fragmentária, referencial, rápida - banda sonora que é o estilo de Pêra em som. O filme, de 42 minutos, ganharia em ser mais curto. A ausência de palavras torna a narrativa muito difusa para o espectador.

Pêra põe o seu virtuosismo como conceptualista e montador ao serviço de outro, muito mais estranho do que o dele: o virtuosismo da multidão. É o virtuosismo como exibição de uma actividade que se cumpre em si mesma e que exige a presença de outros, actividade sem obra: "performance". A multidão moderna assume essa característica antes específica de indivíduos, e sabe que o faz porque existe o cinema e a TV para se exibir.

O virtuosismo da multidão é vernáculo, atabalhoado, desafinado, porque as pessoas que a formam não são ortodoxas senão na fé no clube, embora haja muitas vezes um empenho amoroso e diligente na manufactura de provas da devoção em tatuagens, roupas, taças fingidas, etc.

Também o virtuosismo de Pêra parece exibicionista no sentido em que a concepção, realização e montagem se apresentam como uma linguagem que se esgota em si mesma por ser mais importante que o conceito.

Este exibicionismo é um risco que Pêra corre, pois a repetição da fórmula dos seus filmes tornar-se-á um formalismo bloqueado se não procurar novos caminhos formais para embrulhar os conceitos. Neste filme, o conceito está lá: o futebol, religião laica da multidão contemporânea. "Tu És a Nossa Fé" é a concretização de um projecto completo, é uma profissão de fé no cinema. Tomara que a televisão continue a apoiar obras como esta, que é também, afinal, um "filme comentário" à própria televisão de hoje.