Eduardo Cintra Torres

A Cadeira dos Comentadores


Muitos chocaram-se quando Emídio Rangel disse que se podia vender um presidente pela televisão. Se calhar aplaudem agora a presidência de Santana Lopes no PSD e a ascensão de José Sócrates a secretário-geral do PS.

Enquanto líderes, Santana e Sócrates (S&S) são, em parte, uma criação de Rangel. Ele vendeu-nos estes líderes. Na SIC, Santana Lopes participou no seríissimo concurso da Cadeira do Poder e comentou nesse símbolo de seriedade analítica chamado Donos da Bola, dois símbolos de vida televisiva que Santana tentará apagar, pressionando a SIC a não os mostrar. Veremos o que a SIC faz com esse acervo importante sobre a personalidade que agora nos governa.

Sócrates também comentou na SIC de Rangel e depois transferiu-se com ele e com Santana para a RTP. Na altura, escrevi aqui que S&S estavam no Telejornal, não para comentar, mas no âmbito da sua própria ascensão política. Vê-se o resultado: um é primeiro-ministro, outro provável líder da oposição. Souberam juntar o estrelato televisivo à ligação ao aparelho partidário. Quanto a ideias políticas, ainda estamos para lhes conhecer uma que seja. Mas isso que interessa, se com o aparelho mediático levam os partidos ao poder, e com eles os interesses que se identificam consigo e com os seus partidos?

Embora com passagens por cargos políticos, S&S são, como ansiados líderes, criaturas da televisão. Na quarta-feira, os mesmos noticiários mostravam Sócrates distribuindo no PS beijinhos a fãs da sua imagem televisiva e Santana dando com imenso jeito uma explicação esfarrapada para ter ido a Belém levar apenas dois nomes de ministros.

O futuro próximo reserva-nos uma grande dislexia política: a informação "política" na televisão irá em grande parte concentrar-se naquilo que na política não é política, as performances pessoais de representação dos dois principais dirigentes partidários. S&S tentarão evitar o populismo espampanante, que não cola bem com a nossa vivência colectiva actual, tentando esconder o máximo tempo possível, com a performance televisiva, os interesses político-económicos. Os primeiros dias de Santana mostram o que nos espera: imensa agitação mediática em torno de nomes (o novo ministro tal será anunciado às 18h10 ou às 18h46?), um governo formado na televisão; zero de política.

A revelação da verdadeira natureza do populismo suave será nesta fase mais perigosa para Santana, pois o populismo lida melhor com a oposição do que com o exercício do poder.

É definidor da política actual que S&S tenham chegado ao poder pela televisão; que dois canais - a SIC e depois a RTP no tempo do socialista João Carlos Silva - tenham promovido deliberadamente estes dois ambiciosos políticos, apresentando-os como "comentadores". Venderam-nos gato político por lebre comentadora.

Santana mantém uma estranha relação com a SIC, cujo dirigente, Pinto Balsemão, ele avança como presidenciável para além do razoável. Ainda antes da actual reviravolta política, a SIC apresentou na noite das eleições europeias uma entrevista "em exclusivo" com Santana. É estranho que o número dois do partido no poder e na altura presidente do principal município possa dar uma entrevista "em exclusivo" a um único canal em noite eleitoral.

Já depois de indigitado chefe do governo, Santana volta a dar uma "entrevista exclusiva" à SIC, na mesma noite em que Marcelo Rebelo de Sousa fala na TVI. Freud talvez pudesse explicar. A entrevista foi muito útil, pois revelou o populismo suave em todo o seu esplendor: discussão de ministérios na praça pública, zero ideias novas e uma ideia velha, testada, ineficaz e despesista para agradar/enganar o povo, a deslocação de ministérios. Num invulgar comunicado de imprensa, a SIC congratulou-se pela boa audiência obtida pela entrevista, aliás, pelo entrevistador. Era extraordinário o título do comunicado, que decerto agradou ao populismo suave santanista, para o qual fazer política é dar entrevistas com boa audiência: "Santana Lopes - entrevista exclusiva à SIC faz subir audiências". Podia ser o título dum comunicado do neo-PSD.

E quem é o líder político que antes de o ser já o era em entrevista a Judite de Sousa? Três horas depois de se apresentar (em directo na TV) como candidato à liderança do PS, já Sócrates estava na Grande Entrevista. Com que critério? A RTP1 costuma entrevistar os novos líderes partidários, mas Sócrates não é ainda líder: estamos perante um novo critério ou perante uma opção partidária da direcção de informação da RTP1?

Nessa entrevista, Sócrates já vestiu o fato de um novo personagem, "o líder". Pareceu ter mais substância política do que Santana Lopes. Mas foi só parecer. A entrevista serviu de afirmação da tomada do poder no PS, com a ajuda da RTP1, pelo que não se falou de ideias e projectos, apenas se pretendeu mostrar que Sócrates terá estofo de líder. Com S&S, estamos na estratosfera da mediatização e a milhas do país.

Entretanto, dois verdadeiros comentadores mostraram a sua categoria analisando a situação política. No domingo (12.07), Marcelo recuperou da desastrosa intervenção da anterior, fazendo na TVI uma poderosa análise da personalidade política de Santana. Duas noites mais tarde, Mário Soares, na Sociedade Aberta (SICN) revelou como uma formação e prática políticas sólidas fazem toda a diferença. Às perguntas acertadas de António José Teixeira, Soares, que já da lei da politicazinha se vai libertando (o que Marcelo nem sempre consegue) e que já não se rala muito com o peso das palavras fortes, responde com o peso do seu conhecimento e experiência, dando um excelente contributo à reflexão pública sobre os temas do dia. Este programa podia passar a semanal, ou pelo menos quinzenal.

Outro comentador que podia voltar à SIC é José Pacheco Pereira, que se tinha deixado tentar pelo lugar de embaixador na UNESCO. Agora não quer ser embaixador de Santana. Quer a liberdade de intervir e, com uma dignidade rara, desistiu de Paris. Bem poderia voltar ao Jornal da Noite.

Epílogo: muito os separa, mas o que têm em comum Santana, Sócrates, Marcelo, Soares e Pacheco? Todos são do centrão PSD-PS, todos são dirigentes políticos no activo, no limbo ou numa reforma activa, todos são ou foram comentadores televisivos em "prime time" ou em grande destaque. Com tais pesos-pesados, sejam eles verdadeiros ou falsos comentadores, é difícil que a televisão permita o aparecimento de novos analistas, jornalistas ou politólogos, independentes de todas as formas do poder político. No panorama televisivo actual, as cadeiras do poder político e do poder mediático confundem-se.