Eduardo Cintra Torres

A 2: Modelo, Resultados e Críticas


Os espectadores que apenas têm acesso às quatro frequências nacionais de TV (RTP1, 2, SIC e TVI) vêem mais a 2 do que aqueles que têm a alternativa do cabo. Sucede o mesmo com os outros canais, mas a 2 é o canal que mais perde para o cabo: o seu rating no universo dos que têm cabo é menos de metade do rating no universo dos que não têm a alternativa dos canais temáticos. Como se vê no quadro, os outros três canais não chegam a perder metade da sua audiência.

Ratings: população sem e com TV por cabo (milhares) Fonte: Markdata. Dados de 01.01.04 a 30.06.04 Isto significa que o espectador visado pela programação da 2 encontra nos temáticos do cabo alternativas que lhe são mais gratificantes em géneros como séries, documentários, humor, filmes ou notícias.

Esta tendência acentuar-se-á em Portugal no futuro, como no resto do mundo. Se o Discovery regressasse ao cabo e nele entrasse o HBO (o canal dos Sopranos, Sete Palmos de Terra, etc.) a programação da 2 esvaziar-se-ia parcialmente. Quando houver TV digital, com mais horas de programação e distribuição universal, a 2 poderá deixar de ser alternativa quanto a programação infantil estrangeira ou séries.

Esse futuro já se lê nos números. Mas a experiência dum espectador actual com cabo seria suficiente para saber que há programas que lhe interessam e alternativos à 2 no ARTE, BBC World, Odisseia, People & Arts, TV5, História, etc. E mesmo a ausência de legendas ou dobragem não é problema num país poliglota como o nosso.

Nos EUA, a TV pública, PBS, tem sofrido imenso com as alternativas do cabo em géneros como história, ciências e artes. O seu futuro está em perigo. Os espectadores da PBS têm em média 55 anos! A directora-geral, Pat Mitchell, disse: "Com estas audiências será muito difícil pedir dinheiro ao Congresso, corresponder às universidades e esperar que as nossas audiências continuem a financiar-nos" (a PBS vive de subsídio anualmente debatido pelo Congresso e de doações dos espectadores).

Se a identidade da 2 se baseasse apenas na programação que pode emigrar ou já emigrou para os temáticos, o canal correria o mesmo risco que a PBS. Foi o que concluí em 2001 quando reflecti no PÚBLICO sobre o futuro da RTP2.

Desde Janeiro, a 2 alterou o seu formato institucional e a sua programação. Seguindo sugestões do Grupo de Trabalho para a Televisão (2002), manteve programas infantis, o noticiário da noite, as entrevistas de Por Outro Lado, uma ou duas séries de referência. Mas uma parte das séries já emigrou para o cabo: quase tudo o que é humor britânico está hoje na SIC Radical.

A manutenção de programas, ou a sua evidente melhoria, como é o caso do Jornal 2, levou alguns críticos a defender que a 2 afinal safa-se porque tem menos sociedade civil do que "se esperava". De tanto repetida, qualquer dia essa ideia falsa passa a ser verdadeira e servirá para denegrir o que é realmente novo na 2.

Porque a programação que constitui uma novidade na grelha da 2 é precisamente a que tem sido feita pela ou com a sociedade civil. Deixando descansar a nossa boa amiga D. Arminda, partamos da definição, razoável, da sociedade civil como o conjunto das instituições e organizações cívicas e sociais que formam a base do funcionamento da democracia e que se situam entre o Estado, o mundo económico e a família. Perante a dificuldade em relacionar-se com organizações fluidas, compreende-se que, para manter parcerias duráveis e profícuas, a 2 teria de arrancar com um conjunto de instituições estáveis. Mal ou bem, foi o que fez.

As críticas ao facto de a 2 ter feito parcerias com uma série de instituições do Estado estão correctas, mas só podem ser um lamento por não haver uma sólida sociedade civil no país. Na verdade, a nossa sociedade civil não-estatal ainda está a fazer-se e a ganhar espaço. Parece por isso razoável que se dê voz a uma sociedade civil incipiente que age em parte através do próprio aparelho do Estado ou dele depende. Na 2, os programas feitos com a sociedade civil incluem Tudo em Família, Causas Comuns, Fé dos Homens e Clube de Jornalistas. A mais recente aquisição, e uma das mais interessantes, é o espaço feito com as universidades, espaço cuja existência propus aqui desde há mais de 2 anos.

Tudo em Família e Causas Comuns são programas de estúdio, o que contradiz à partida o conceito de sociedade civil, uma coisa social do "lá fora". A 2 justifica o modelo com falta de orçamento e empenho dos parceiros, mas já era tempo de ter mudado. De qualquer forma, os temas dos dois programas são adequados para debate na TV. Eis temas recentes: sem-abrigo, mulheres com deficiência, grávidas e o HIV, família e tóxico-dependência, cuidados para a diabetes, o mar como fonte de recursos e de independência, incêndios florestais. Também o Conselho de Estado se tem aberto a temas esquecidos por outros programas de debate.

O espaço das universidades, a que já aderiram diversas escolas, exemplifica o que se pode esperar duma sociedade civil impreparada: ingenuidade, má capacidade técnica, linguagem televisiva falhada, auto-propaganda. Mas há ali mais do que isso: dá-se voz e imagem a quem não as tinha, novos pontos de vista sobre a realidade, a revelação de um mundo quase desconhecido para muitos cidadãos (a universidade), o experimentalismo, etc. Pode ser um importante impulso para a formação, a imaginação e para a saudável competição entre escolas.

Fiquei espantado com as opiniões que exprimiram recentemente sobre os programas da sociedade civil da 2 pessoas com responsabilidades no ensino e conotadas com posições de esquerda. Essas opiniões, embrulhadas no conceito de "gosto", como convém, omitem o interesse que possa ter para a sociedade em geral o caminho seguido pela 2. Há uma certa dose de egoísmo em desejar que a programação da 2 seja para "mim" e não para os "outros". Compreendo que seja aborrecido para uma certa parte da audiência debater-se um tema como as grávidas e o HIV. E que prefira ver o tema do HIV abordado numa série como Anjos na América. Acontece que o debate das Causas Comuns não é para essas pessoas. É para um público que tem o direito a essa informação e formação.

Considerar que Anjos na América é um "bom" programa e Causas Comuns é um "mau" programa seria falacioso e resultando duma opção conservadora: insiste-se em que a 2 seja um programa de cultura e de minorias intelectuais e enxota-se "o povo" para Preços Certos em Euros, Malucos do Riso e Batanetes. Não se diz, mas é ainda o fosso entre os portugueses "educados" e os "ignorantes" que se defende.