Eduardo Cintra Torres

A Feliz Prisioneira


TV generalista tem conseguido audiências extraordinárias com jogos do Euro 2004; a cobertura deste evento colossal em termos mediáticos e de mobilização nacional é avassaladora. Mas eu arrisco deixar o Euro em pano de fundo e reflectir sobre o que a esta coluna interessa: a TV e os caminhos que leva.

O Euro 2004 mostra-nos a TV generalista cumprindo características essenciais que assumiu durante décadas: ao vivo, em directo e em todas as casas; cumprindo rituais e também o imprevisto, ela dá-se à nação e dá a nação a si mesma.

Feliz, portanto, com o Euro 2004, e com que intensidade. A raridade do evento não faz, porém, a raridade dos eventos: tenho defendido a tendência da TV generalista para se ancorar numa lógica de eventos e falsos eventos sucessivos - a eventificação. O Euro 2004 é por isso um evento descomunal e magnífico num fluxo constante de picos de eventual excitação.

Defino eventos como textos televisivos correspondendo ou não a factos sociais exteriores à televisão e construídos como se fossem experiências únicas, singulares, irrepetíveis, vividas intensamente, textos baseados numa concepção de TV "de realidade" com interacção presencial entre as personagens que se representam a si mesmas e um público que se representa a si mesmo.

Nesta definição cabe não só o Euro 2004 como as "galas" de Verão que a SIC realiza no Algarve, as festas à porta dos estádios, as "galas" dos prémios e dos aniversários dos canais, as transmissões do Rock in "Rio", aliás in Chelas, e tantas outras que enxameiam os três canais generalistas. Os que correspondem a realidades exteriores à TV, como o Euro, são eventos; os inventados pela TV são pseudo-eventos.

A TV tanto puxa a carroça social como lhe pede boleia, mas um "mass media" não pode afastar-se do que é aceitável para as massas que o consomem: eventos e pseudo-eventos correspondem à crescente disponibilidade dos indivíduos para se excitarem em ocasiões públicas colectivas.

Entretanto, a eventificação dos canais generalistas contraria características de outrora, como a ritualização do calendário profano, com os telejornais, as séries, os programas todos certinhos, todos os dias ou semanas à mesma hora. A programação errática dos nosso canais generalistas resulta não só da contraprogramação como da busca permanente de tele-excitação. É hoje quase impossível a um programador manter uma série sempre à mesma hora do mesmo dia porque há sempre "eventos" alterando calendários. Programados selvaticamente, as séries acabam por perder audiências fixas. A TV de eventos é uma TV de audiências móveis.

Foi já há 20 anos que um investigador americano traçou o quadro da morte da TV generalista devido ao advento do vídeo pessoal e da TV por cabo, levando à segmentação da audiência. Esse texto de David Marc, "What Was Broadcasting?" (o que era a televisão generalista?) lamentava os efeitos da fragmentação sobre a vida da nação. Marc não podia prever em 1984 a eventificação da TV, para mais patriótica, que hoje chega aos próprios noticiários, transformados em narrativas emocionantes e melodramáticas nas quais a excitação (nacional ou grupal) pode sobrepor-se à informação. Por exemplo, o Telejornal da RTP1 de 25/6, apresentando extractos do jogo Portugal-Inglaterra da véspera, mostrava apenas os golos portugueses, omitindo os ingleses. O conceito da peça era o de mostrar o que excitara a nação portuguesa e não o de noticiar o jogo.

A eventificação do fluxo televisivo, incluindo os noticiários, pretende contrariar a fuga de públicos para outras actividades lúdicas, incluindo a TV especializada e à "la carte", como o cabo proporciona. Ao atrair os públicos mais dinâmicos, o cabo e outros entretenimentos, como a web ou as actividades fora de casa, deixam à TV generalista os públicos menos disponíveis para ficção não folhetinesca, debates e programas não-jocosos: "crianças, velhos e pobres", como disse Denis McQuail em Lisboa em 2000.

Esta situação tem consequências importantes para a programação dos canais generalistas. A recessão da ficção atinge uma dimensão grave. Há cerca de um ano, num artigo aqui publicado, cheguei a uma conclusão que me surpreendeu: as tendências da TV generalista portuguesa ocorriam aqui pela pequenez do mercado, mas elas aconteceriam também nos mercados maiores. Portugal na vanguarda! Estas mudanças que os canais generalistas portugueses têm vindo a sofrer ocorrem também nos EUA:

- A transferência dos espectadores para o cabo é constante. O cabo e satélite já têm mais de metade da audiência da TV norte-americana.

- As grandes séries da TV generalista, como Friends, vão terminando sem terem substitutas.

- A TV generalista já "normalizou" um género que há dois ou três anos lhe parecia não "consensual": a "reality TV". A quantidade de programas "de realidade", muitos deles proporcionando "eventos" televisivos, aumentou exponencialmente, transformando-se num género institucional das "networks". O receio da comunidade de argumentistas dos EUA vem-se transformando em pânico: a regressão da ficção e a cavalgada da "reality TV" roubam trabalho a centenas ou milhares de pessoas em Nova Iorque e Los Angeles.

- Na próxima temporada, os canais generalistas americanos recorrerão pela primeira vez a uma prática que entre nós já se estabeleceu há vários anos: a repetição de programas. A quantidade de repetições previstas é grande e defendida como "inevitável", por já não ser possível à TV generalista apresentar 15 ou 22 horas de programação original por dia. A repetição inclui pela primeira vez programas de "reality TV", o que permite rentabilizá-los tal como aos programas de ficção.

- A eventificação serve aos canais generalistas para contrariarem a quebra de audiência (menos seis por cento de espectadores do grupo 18-49 anos desde o ano 2000), pois, quando resultam, os eventos são as ocasiões mais importantes para os anunciantes, dado que mais nenhum "mass media" consegue atingir tanta gente ao mesmo tempo.

Em resumo, a TV generalista caminha para mais "realidade" e menos ficção, mais repetições, mais "eventos", menos espectadores em geral e mais concentração de audiência heterogénea em momentos de excitação colectiva. Não é a morte da televisão generalista, mas é a morte da televisão generalista que conhecíamos há 20, dez ou cinco anos. A mudança é grande. Falta saber o que acontecerá com a banalização da "eventificação" da grelha e que fuga encontrará a TV generalista para esta dependência do "evento" de que hoje se sente uma feliz prisioneira.