Eduardo Cintra Torres

Quotidiano "Versus" Novidades


Sobre o Iraque os noticiários televisivos quase só mostram a carnificina contra iraquianos junto aos portões de recrutamento de soldados. Só o que choca é notícia. Só o que rompe o quotidiano merece tempo de antena.

É da natureza do jornalismo sublinhar a novidade, e os ataques suicidas enquadram-se por isso na actividade básica de informar e ser informado, essencial na vida contemporânea. Mas, transformada em única, esta atitude jornalística deixa de ser um ponto de vista privilegiado (o "vantage point" de que falam os manuais) para ser, se não uma mentira, pelo menos uns antolhos que não deixam ver mais nada.

Tendendo a simplificar, a informação televisiva mostra o sangue na estrada, mostra como se vai morrendo e omite como se vai vivendo, o que se vai construindo, a difícil soma dos mil actos de cada dia. A BBC fez uma reportagem há meses que contrariava a imagem catastrofista dos noticiários do costume. A SIC reproduziu essa reportagem, a mesma SIC para a qual os incidentes provocados pelo clérigo Al-Sadr representavam "a guerra sem fim". A repórter da TVI Carmen Santos fez várias vezes tentativas de sair do cerco da ideologia dominante dos noticiários, mas as ideias feitas hegemónicas no universo jornalístico não a ajudaram, quando tinha de dialogar com o estúdio: os apresentadores o que queriam era o sangue na estrada.

Este quadro informativo distorce a representação que o espectador possa fazer da realidade iraquiana. Quem não dê atenção a outros meios de informação será tentando a análises apocalípticas, como as de Miguel Sousa Tavares. Baseando-se habitualmente na superficialidade analítica, ele recorre ao seu estilo alternadamente gongórico, impressionista, expressionista ou surrealista para apresentar o Iraque e o mundo à beira das catástrofes que a sua voz oracular anuncia, por escrito ou em directo, e só ela permitirá evitar.

O Arte passou de terça a sexta os quatro episódios de um folhetim documental que mostrava a vida de uma família de Bagdad. Chamava-se "Bagdad Quotidiano Bagdad". O seu realizador, Romain Goupil, é um cineasta militante com origem no Maio de 68. Desta vez preferiu que o seu "vantage point" fosse o de observador do dia-a-dia de uma família iraquiana.

Esta "telenovela de realidade" mostra os pequenos-almoços da família pobre de Abbas, ele, a mulher e as quatro crianças; a ida para a escola; o difícil pão de cada dia para Abbas depois de 23 anos no exército de Saddam; os trabalhos de casa; as falhas de electricidade; as discussões sobre o destino a dar ao pouco dinheiro; a vida nas ruas e estradas da capital.

Mostra também outros membros da família: um deles meteu-se na construção e está a caminho de prosperar com a nova situação. O cunhado de Abbas é jornalista e dá aulas de Francês. A mulher trabalha. Vivem num apartamento muito acima da média: saem à noite para comer fora e para comprar roupa. Numa reunião de família conhecemos o avô, vestido nas roupas tradicionais. Ele é o que denuncia com mais veemência o "tirano de Tikrit" e a sua "ditadura fascista" e agradece "60 mil vezes" aos americanos. Na reunião de família há sunitas e xiitas.

O realizador intervém como "cameraman" e como montador das imagens. Não é pouco. Faz o mesmo que os repórteres do sangue na estrada, mas muda radicalmente o conceito. A notícia procura por norma a alteração violenta do quotidiano. E "Quotidiano Bagdad Quotidiano" é um filme de autor que pretende mostrar o dia-a-dia sem interrupções de uma família vulgar. Goupil não procurou nem pediu nada aos personagens do seu documentário. Seguiu-os com uma pequena câmara digital. A banda sonora, como em "Lisbon Story", de Wim Wenders, é o som da cidade por essa câmara guardado.

Realizado o folhetim em Fevereiro, o realizador promete voltar em 2005 para filmar de novo a família e saber se a sua situação melhorou ou piorou. A "telenovela de realidade" foi montada em episódios centrados em personagens. Primeiro Abbas, o que tem mais dúvidas sobre a nova situação. Ele e os outros falam sobre as vantagens e desvantagens da liberdade, quando a situação securitária não está garantida. Tendo perdido o emprego e sem receber qualquer pensão, Abbas faz entregas erráticas de electrodomésticos pela cidade, vendo os outros melhorar a vida e saudar para a câmara de Goupil o fim da tirania.

O segundo episódio centra-se em Yasmine, a mulher, centro do quotidiano. Se Abbas nos levou às ruas, ela leva-nos a outras famílias. Narmine, a sua irmã, esperou durante dez anos o regresso do marido desaparecido; só em 2003 soube que ele tinha sido assassinado há oito anos na prisão pelo regime de Saddam; nunca lhe disseram. A outra irmã, Nahla, que não usa véu e pinta o cabelo de louro, é casada com o jornalista Hilmi, centro do terceiro episódio.

Num certo momento, ouve-se a voz de um homem dizer, quando o cineasta lhe perguntou em inglês se ele gostava de Saddam, que sim. Não é que gostasse, pelo contrário, apenas se irrita por dizer mal de um iraquiano, mesmo sendo Saddam, a um estrangeiro. Esta voz que se ouve enquanto o carro circula numa estrada de Bagdad sobrepõe representações e indica como é difícil o acesso à "realidade": o homem representou para o cineasta quando a câmara não estava ligada, voltou a representar para ele, sem saber, enquanto falava em iraquiano, dizendo o contrário sobre Saddam; e o cineasta representa a cena para nós na linguagem do cinema, a linguagem artística que, dizem tantos, é a que mais se aproxima da "verdade". Cada espectador acrescenta depois a sua interpretação ao que vê.

O último episódio mostra a reunião de família e o casamento de uma sobrinha, vestindo os noivos como os ocidentais e cantando e dançando todos um pop iraquiano parecido com todos os outros. O casamento serve ao cineasta para nos fazer regressar à casa de Abbas, onde, ao raiar a madrugada, quando as crianças ainda dormem, o casal aproveita para conversar. Introduzindo uma volta na narrativa, o realizador deixou para o final do folhetim esse momento matinal em que Abbas diz à mulher que vai deixar o seu trabalho actual. Terá sido por ter visto a prosperidade dos outros no casamento? A novela termina com Abbas saindo e fechando a porta de casa.