Eduardo Cintra Torres

A Europa Não Existe, Só o Euro Existe


Na semana passada escrevi sobre a campanha eleitoral para o Parlamento Europeu e a imbecilidade da redução das campanhas eleitorais pelos partidos políticos aos passeios dos candidatos por feiras e mercados.

Referi como a distribuição de beijinhos, abraços, puxões, papelinhos e pés de dança por feitas, lotas e mercados é uma actividade tremendamente antipolítica: nada diz sobre o que os partidos querem; nada diz sobre as diferenças entre eles; nada sobre a capacidade dos políticos de representarem bem os seus concidadãos nas câmaras, nos parlamentos ou nos palácios presidenciais; nada, também, sobre o agrado que os candidatos despertam nos mercados e feiras, pois, na presença das câmaras de televisão, todos se transformam em actores por um momento: candidatos, feirantes, peixeiras, compradores.

Faltou referir o esforço que representam estas campanhas, todas elas, as bem ou as mal organizadas. Como repórter de agência e de rádio, acompanhei duas campanhas eleitorais nos anos 80, a idade antes das auto-estradas. Uma estava bem preparada (a de Freitas do Amaral), outra mal (a de Lucas Pires para as legislativas). Nessa altura já havia passeios por feiras e mercados, embora não com a frequência actual nem com o circo mediático e militante em redor dos candidatos, pois só havia a TV do Estado. Já eram momentos de vazio político. A certa altura da campanha os candidatos estão extenuados e já não dizem coisa com coisa. Lembro-me de Lucas Pires, numa feira de Vila Franca de Xira, falando a um gato ao colo de uma mulher como se fosse um bebé. E lembro-me do terrível cansaço marcado na sua cara em cada nova manhã de uma campanha que parecia não acabar.

O relato do repórter do PÚBLICO João Pedro Henriques sobre os acontecimentos na lota de Matosinhos refere que "nenhuma imagem televisiva conseguirá retratar por completo" a "demência que atingiram" as coisas (10.06). É verdade. A televisão nunca consegue reproduzir se não uma pequena parte da realidade que representa. Mas ao focar um ponto de vista ela mostra-o com grande intensidade. E ao mostrá-lo repetidamente permite entrar em acontecimentos com perícia policial. É o caso das últimas imagens de António Sousa Franco na lota de Matosinhos, captadas por três câmaras (RTP, SIC, TVI). Mostram muito.

Depois da morte do candidato, as imagens assumem um carácter terrível e trágico. São terríveis porque se vê espelhado no ecrã o esforço sobre-humano do cabeça-de-lista do PS às eleições europeias. Vê-se a sua desorientação, própria de quem ouve mal num local de gritaria insana e de ecos repetidos nos mármores e cantarias molhadas. Vê-se o seu sorriso cansado e, no final, humanamente falso. Vê-se o candidato a ser puxado, violentamente puxado, com um braço para trás e outro para a frente, como uma marioneta abandonada pela direcção do seu partido nas mãos vorazes de duas personagens dum horrível combate de caciques pelo controle de uma autarquia rica, o chefe da câmara de Matosinhos e o chefe da concelhia partidária. Vê-se a manipulação consentida das mulheres a ver quem gritava mais alto os nomes dos dois caciques. Vê-se o alívio extenuado de Sousa Franco quando saiu daquele antro da antipolítica e da anticidadania. E ouvem-se as suas últimas palavras para os jornalistas: estar ali era "acima de tudo um esforço humano e emocional".

Sousa Franco não disse que era uma tarefa política, não podia dizer. Sublinhou que ir ali era um esforço físico e emocional. As imagens são trágicas porque vemos o exagero desse esforço sabendo que ele podia ser evitado se a demência das campanhas partidárias e a fúria dos caciques não tivessem lugar, se os aparelhos central e locais dos partidos fossem profissionais, modernos e capazes de organizar luta política em democracia. Aquelas reportagens na lota também mostram o que não mostram: nem uma palavra sobre eleições, nem uma palavra sobre Europa.

Tomara que os jornalistas de televisão soubessem no futuro não insistir em mostrar o lado mais apolítico e folclórico das campanhas. Dariam uma lição aos partidos, a quem cabe a responsabilidade das campanhas. Se os partidos as repolitizassem, os jornalistas de televisão não teriam outro caminho senão segui-los.

* * * Tal como os nossos políticos, também o nosso jornalismo televisivo é fraco e prefere o entretenimento à notícia. A vergonha do silêncio da televisão portuguesa, nomeadamente do serviço público, perante as magníficas e profundamente significativas cerimónias dos 60 anos do desembarque na Normandia já foi escalpelizada por Teresa de Sousa no PÚBLICO (08.06). O seu artigo "Normandia? Onde é isso?" fez a crítica política e televisiva da "cegueira medíocre" duma televisão que se baba em histéricos infindáveis directos perante o casamento dum príncipe ou perante gritos de espectadores num qualquer Rock in Rio e ignora, em plena campanha eleitoral europeia, a espectacular recordação e reconstituição dum dos mais importantes actos que tornaram possível essa mesma Europa que agora elege os seus deputados.

É de facto uma vergonha que a televisão portuguesa, em especial a RTP1 e a 2, tenha ignorado as comemorações na Normandia, onde estiveram 17 chefes de Estado e de governo mundiais. Mas não nos iludamos: se temos a televisão que temos é porque temos o poder que temos e por sermos o povo que somos. A televisão ignorou a Normandia? Mas nesse dia Jorge Sampaio estava no Rock in Rio, não estava em Caen! E Durão Barroso andava em inaugurações, não estava em Arromanche. A televisão não mostrou as comemorações da Europa e só fala do Euro 2004? Mas Sampaio escreve artigos sobre o Euro (PÚBLICO, 12.06) e não escreve sobre o Dia D. A televisão entra em histeria com o vestido de Letizia? Mas Sampaio estava lá!

Ser director de um canal de televisão com responsabilidades públicas também é saber escolher o que é importante para o país em termos políticos e culturais. A direcção de informação da RTP revela continuar a estabelecer todo o seu padrão informativo em função do que supõe ser o que garante mais audiência. José Rodrigues dos Santos e Judite de Sousa fazem na RTP o que fariam na SIC ou na TVI: o populismo atravessa hoje quase toda a informação televisiva portuguesa. Mas os nossos Rodrigues dos Santos e Judites de Sousas correspondem aos nossos Sampaios, Durões e Ferros. Com a classe política que temos, continuarão as infernais campanhas em lotas e feiras, continuará a política de estádio e continuarão as correspondentes emissões pimbas sem fim de cada vez que tremulam bandeiras e bandeirolas nos estádios e nas lotas.