Eduardo Cintra Torres

Da Ignorância e da Humilhação


A televisão gosta de revelar a ignorância das pessoas comuns. Um jornalista sai à rua e pergunta sabe quem foi Fulano? Quais os novos países da União Europeia? Quando são as eleições europeias? A maior parte das pessoas não sabe. Estranho seria o contrário. Estudos indicam que o aumento da escolaridade não diminui o desinteresse por determinadas matérias.

Os cidadãos assim interrogados permitem que as imagens vão para o ar, pelo que não podemos questionar a legitimidade do seu uso. Mas podemos questionar a ética que o informa, ou a falta dela.

Uma consequência da ignorância revelada é a humilhação. Noutros tempos, a humilhação a que as câmaras sujeitam as pessoas seria questionada, mas hoje ela tornou-se um dos principais "valores" da televisão. Inúmeros "reality shows" nos Estados Unidos, Japão e Europa passam pela humilhação dos participantes.

O caso mais recente em Portugal tem sido o horroroso programa Um Sonho de Mulher, destinado a eleger uma "Miss Portugal". O programa baseou-se, como o Ídolos, também da SIC, num júri agressivo. Neste caso foi pior, porque nos Ídolos o júri criticava capacidades musicais adquiridas (ou não), enquanto neste "pesadelo de mulher" os jurados foram arrasadores sobre o corpo das concorrentes. Três dos jurados, Xana Guerra, Manuel Serrão e Vítor Nobre, recorreram à grosseria, à má-criação, à brutal humilhação das raparigas. É horrível que a televisão generalista tenha de recorrer a gente que não se sabe comportar nem respeitar quem participa de boa-fé e boa-vontade nos seus programas.

Houve reacções de candidatas à ordinarice daqueles elementos do júri. Uma das concorrentes apresentou-se na segunda etapa apenas para desistir e declarar aos membros do júri que não tinham o direito de humilhar as concorrentes daquela maneira; pois mesmo assim os três horríveis indivíduos prolongaram a sua má-criação, interrompendo a rapariga por diversas vezes.

A humilhação das concorrentes foi sendo justificada com a ideia de que elas "não têm a noção" do que é candidatar-se a "miss". Ora, elas "não têm a noção" de outros, mas têm a delas próprias e a do meio de onde vêm. E na "noção" delas inclui-se, e muito, o que os media lhes inculcaram sobre poderem "lá" chegar, à beleza.

Humilhando as "misses" enganadas pelos próprios media, humilhando os ignorantes que não sabem quem é fulano ou sicrano, a televisão assume uma atitude "fundamentalmente desrespeitosa da experiência popular", como refere a especialista em comunicação Joli Jensen.

Todavia, há que anotar que muitas pessoas poderão não viver tais situações como humilhações, sendo mais importante o aparecerem na TV, quer porque não vivem a ignorância como algo de estranho mas antes um estado normal, quer porque o momento mediático é o fim que justifica os meios: os 15 meios minutos de TV não deixarão de ser "de glória" por causa do seu conteúdo.

Isso não torna correcto que a televisão se (nos) tente divertir com a ignorância alheia e sua humilhação. Nenhum motivo justifica que se humilhe pessoas na televisão. Um professor não deve humilhar um aluno que não sabe. Porque há-de poder fazê-lo um jornalista?

Mas há uma razão ainda mais forte para que a televisão não tenha qualquer autoridade ética ou pedagógica para humilhar os eventuais ignorantes: é que a televisão é uma das fontes dessa mesma ignorância.

Se é certo que a televisão é fonte de inúmeras informações úteis e conhecimentos avulsos, ela também é um fluxo de superficialidade e irrelevância, em especial a televisão generalista. Como afirma o filósofo alemão Peter Sloterdijk, os media "descendem ao mesmo tempo da enciclopédia e do circo".

Como podem as pessoas comuns escrever Bom Português se os noticiários dos vários canais estão infestados de erros ortográficos de palmatória, de frases mal construídas, de centenas de coloquialismos evitáveis, enfim, de milhares de provas de ignorância da sua língua por parte dos próprios jornalistas?

É certo a secção Bom Português da RTP não se inscreve no género da humilhação, sendo antes uma espécie de teste, bem construído em televisão, em que uns passam e outros não. Mas pode aparecer no mesmo noticiário um teste à ignorância dos "outros" portugueses. Quando se perguntou a pessoas na rua, no final de Abril, se sabiam os nomes dos 10 novos países membros da União Europeia, é evidente que a maioria das pessoas não podia saber porque a própria televisão praticamente não falou do assunto! Como pode a maioria saber os nomes dos novos membros da Europa unida se a televisão, que representa a principal fonte de informação para mais de 80 por cento delas, quase não as informou desse facto?

A notícia da sondagem RTP/PÚBLICO/Renascença sobre as eleições europeias apresentada pela RTP1 (13.05) dava menos importância aos resultados (o PS à frente da coligação governamental) do que à ignorância dos inquiridos: mais de metade dos entrevistados (53%) não sabia quando se realizam as eleições de 13 de Junho, nem por aproximação ao mês. Ora as pessoas não sabem porque a televisão não lhes diz! Raramente a televisão fala das eleições europeias!

Um trabalho universitário recente ajudou a estabelecer uma relação entre a ignorância e a oferta televisiva. O Glasgow University Media Group fez um trabalho de análise de conteúdo de todas as notícias da BBC e da ITN entre Setembro e Outubro de 2000 sobre o levantamento palestino nos territórios ocupados por Israel. O estudo revelava que a quase totalidade das notícias se centrava em mostrar actos de violência e conflitos sem dar a mínima explicação contextual. Nas 3536 linhas de texto das 87 notícias analisadas apenas 17 explicavam o conflito (menos de 0,5 por cento!)

O estudo incluiu também entrevistas a 12 grupos com 85 espectadores e entrevistas individuais a 300 jovens com idades entre os 17 e os 22 anos. Das duas amostras, 82 por cento disse que a televisão era a sua principal fonte de informação.

Resultados? A maioria dos entrevistados disse que não sabia quem é que ocupava os territórios ocupados, nem porquê. Entre os 300 jovens, 71 por cento não sabia que Israel ocupava os territórios; 11 por cento pensava erradamente que eram os palestinos que ocupavam os territórios... em colonatos palestinos.

As perguntas sobre ignorância às pessoas da rua não revelam esta verdadeira origem da ignorância: a própria televisão. É preciso que os cidadãos e os espectadores pareçam ignorantes para que a televisão pareça não o ser.