Eduardo Cintra Torres

Singularidades de Uma Peça Jornalística


A Relação teve razão: a passagem da detenção de Carlos Cruz (CC) a domiciliária não provocou "alarme social" nem "alterações na ordem pública"; apenas provocou alarme comunicacional e alteração na ordem mediática.

Desde o "pivot" do "serviço público" José Alberto Carvalho tratando a mulher do apresentador pelo nome próprio, às inúmeras referências a haver agora apenas um arguido em prisão preventiva (quando eram dois, pressupondo-se que apenas a de "Bibi" se justificava), até à jornalista da TVI que viu CC orando dentro do carro ("ele está a rezar!"), foi um ver-se-te-avias na tarde de terça-feira. Só houve, de facto, comoção de jornalistas de helicóptero, moto, carro ou apeados. À porta de casa do apresentador apareceram não só amigos e familiares como caçadores de oportunidades mediáticas: quando lhes cheira, colam-se às câmaras como carraças. Lili Caneças disse para as câmaras que nem sequer conhece CC, apenas vinha dar "um beijinho" a um dos advogados. Até o treinador do cão de Cruz foi entrevistado. Os jornalistas não perguntaram o nome do senhor, só o nome do cão. Faltou entrevistar o cão.

O "evento" televisivo durou duas horas e prolongou-se, repetindo-se, pelos noticiários. A alteração da medida de coacção de muito grave para grave transformou-se numa "libertação", um novo 25 de Abril em Caxias, um novo Paulo Pedroso em S. Bento. Sessenta segundos de imagens significativas (saída de Cruz do EPL e chegada a casa, espaço privado) transformaram-se num fluxo de horas sem conteúdo informativo.

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Em termos televisivos, a única novidade do "evento" foi uma interessante peça no Jornal da Noite da SIC no dia seguinte (05.05), de Pedro Coelho. Chamo-lhe "peça" e não notícia ou reportagem pois trata-se dum híbrido misturando informação e comentário. A peça faz o filme dos acontecimentos da véspera, concentrando-se nos "24 minutos de emoção em directo" - e esse "poderia bem ser o título da história da 'libertação mitigada'", como referia Rodrigo G. de Carvalho (RGC), num recurso à linguagem ficcional. As horas de emissão da véspera são transfiguradas em referência ao tempo real que separou a saída do EPL até à garagem da casa.

À apresentação da peça por RGC, segue-se uma reconstituição de cinco minutos (o tempo total é de 5m24s), num notável trabalho técnico de montagem em 21 planos que mostram a evolução do automóvel dum dos advogados desde que surge do interior do EPL até se fechar o portão da garagem de CC. A peça mostrava os repórteres empurrando e sendo empurrados e dava a ouvir as repórteres no EPL e em Birre falando sobre a confusão no meio da confusão.

A montagem é simples ou recorre à fusão de planos; usa-se a circularidade narrativo-visual (numa cena, um blusão negro à frente da garagem ocupa todo o écrã e a cena termina com a porta negra da garagem).

Usam-se todos os signos de velocidade narrativa: o sumário (o resumo inicial); a elipse (os 24 minutos resumem-se em cinco); a pausa (imagem fixa de CC dentro do carro, com a cabeça iluminada por um círculo debruado a amarelo, como os santos); a extensão (o "ralenti" da imagem permitindo a extensão do discurso narrativo); a cena (quando reproduz o directo, em que o tempo narrado corresponde ao tempo real).

No conjunto do presente da narrativa e no presente dos directos recuperados da véspera há quatro tipos de tempo narrativo: posterior (tempo passado), anterior (tempo futuro da chegada de CC e do debate instrutório), presente (os directos) e durativo (a narração inscreve-se numa narrativa muito mais longa já iniciada e não terminada).

A peça recorre à analepse ("flash-back") visual para recuperar declarações posteriores de Raquel Cruz e Marta Cruz para as quais não havia imagens (no interior da casa) e recorre à prolepse verbal para antecipar o debate instrutório. Recorre à coincidência da imagem com a palavra da narrativa: por exemplo, menciona-se uma repórter e vê-se esta no mesmo segundo no meio da confusão em Birre.

A peça usa uma metáfora visual e textual muito forte, a viagem. O percurso de 24 minutos de CC é usado como metáfora para o longo caminho percorrido desde há 15 meses e ainda a percorrer, até ao Calvário - ressurreição: o último plano, repetido, mostra a traseira do carro com CC perseguido por policias e jornalistas.

A complexa construção da peça usa directos do dia anterior, com as respectivas intervenções visuais e verbais de RGC e dos repórteres, sendo assim auto-referencial: trata-se de mostrar o próprio trabalho da SIC e dos seus repórteres ao mesmo tempo que se mostra o filme do percurso EPL - Birre. Apesar da complexidade, o resultado é de grande fluência narrativa, necessária num meio de massas como a TV.

Esta reportagem filia-se na qualidade formal que a SIC conheceu em tempos e que vinha a desaparecer. Nenhum outro canal tem reportagens com este rigor formal.

O aspecto mais surpreendente da peça é o que em narratologia se chama a voz do narrador, pois à enunciação narrativa se juntam não só as chamadas intrusões subjectivas como verdadeiros comentários.

O texto faz uma declaração editorial no interior da narração de eventos. Há nele implícitos dois tipos de espectadores: os só atentos ao filme da «libertação» de CC e aqueles a quem se responde por antecipação. Serão estes, afinal, os destinatários da peça, os espectadores implicados. E quem são eles? São os críticos habituais do jornalismo de directos emocionais e incontroláveis: o espectador implicado desta peça é o crítico do jornalismo televisivo.

Diz a autoridade do narrador em "voz off": "Várias vezes os jornalistas são confrontados com estes momentos em directo e de aperto e sujeitos à obrigação do rigor informativo e da frieza em cima do acontecimento quando tudo à volta transpira emoção e nervos, de polícias, de populares e de jornalistas." Eis, portanto, o tema escondido da peça, um comentário de meta-jornalismo. E acrescenta: "Várias vezes, os habituados a escreverem sobre os jornalistas do directo lhes criticam a entrega e o desempenho. Frente aos televisores ou colados às rádios, lá estão, contudo, quase todos, os que simplesmente criticam e os que simplesmente consomem." Mensagem: os críticos estão sentados, colados à TV, e só sabem criticar o trabalho difícil dos telejornalistas no terreno. Os outros espectadores limitam-se a consumir.

Antecipando críticas, o narrador mostra jornalistas nervosos à porta de CC e diz: "Isto não é um pelotão de fuzilamento, é um conjunto de trabalhadores, polícias e jornalistas". E adapta uma tese conhecida a uma nova prática: também os jornalistas de TV devem dar ao espectador - aliás, ao consumidor - aquilo que (se julga que) ele quer ver. Diz o texto: "Não era esta a imagem que quase todos queríamos consumir?"

Para justificar a tese, o narrador recorre a uma autoridade exterior à sua, a de CC e do seu advogado: "Não estranharia Cruz, o 'senhor televisão', que as televisões e o país o desacompanhassem no momento da 'libertação mitigada'?" E R. Sá Fernandes "não estranhou as câmaras, conversou connosco ao longo do caminho para Cascais".

Em resumo, "quase todos" os "consumidores" querem, e CC e o seu advogado aceitam, estas imagens. Logo, a SIC dá-as. O resultado justifica-se pela emoção do directo e protagonistas, incluindo jornalistas, e pela adesão do espectador-ideal ("quase todos", excluindo-se os "habituados a escreverem" sobre o assunto) e a das próprias personagens (CC, o seu advogado e as outras vozes ouvidas na intimidade e reproduzidas na peça, Raquel Cruz e Marta Cruz).

O texto é também uma justificação do trabalho da SIC, não no que a peça chama "os momentos de televisão", mas neste caso particular, na forma como trata o caso CC.

A linguagem utilizada na peça ajuda a entendê-la. Eis alguns termos usados: "libertação", "libertação mitigada", CC "referência nacional" e "senhor televisão", CC "cabisbaixo" por "crime que não cometeu" e "prisão que não se justificava", "reencontro com a liberdade", "grande festa", "muito feliz", "muitos beijinhos". E eis alguns termos excluídos pelo narrador ou personagens da peça: prisão domiciliária, arguido, acusação, processo, Casa Pia, vítimas, pedofilia.