Eduardo Cintra Torres

Quando Os Programas São Intervalos


Onde começa e acaba a publicidade televisiva? Que vigilância exercem neste domínio as autoridades?

É crescente a fuga dos espectadores aos intervalos publicitários. Um estudo realizado junto de 11.300 pessoas em 20 países europeus e EUA indica que 40 por cento consideram a publicidade aborrecida (fonte: Obercom). Outro estudo revela a deterioração da efectividade das campanhas publicitárias por aumentarem substancialmente as percepções negativas sobre a publicidade: 54 por cento "evitam comprar produtos que os esmagam com publicidade e marketing" e 60 por cento têm hoje uma opinião sobre a publicidade "muito mais negativa do que há alguns anos".

São resultados que apontam para novas formas de vida e pensamento. É "muito significativo" que 45 por cento dos inquiridos digam que a publicidade e marketing "diminui a experiência da vida quotidiana", e que 33 por cento "estariam dispostos a um nível de vida ligeiramente inferior para viverem numa sociedade sem marketing e publicidade." Os resultados apontam menos para uma oposição à existência da publicidade do que a um desacordo à sua forma "crescentemente intromissa": há "um fosso crescente entre como os consumidores querem receber comunicação e a forma como os publicitários comunicam com eles."

Daí que anunciantes e operadores procurem outras formas, uns de se mostrarem, outros de aumentarem receitas. O primeiro estudo que referi revela grande abertura dos mais jovens à publicidade encapotada através da colocação de produtos em programas e filmes. Nos EUA, apesar de a publicidade tradicional na TV liderar a atenção às marcas (62 por cento), mais de metade dos inquiridos afirmou prestar atenção às marcas publicitadas no meio dos filmes e dos programas de TV.

Muitos filmes têm anúncios, embora de forma subtil e enquadrada na narrativa. O filme de 2002 da série James Bond, "Die Another Day", incluía publicidade a 12 marcas. O facto de não serem divulgados os valores deste anúncios revela bem como é fluida a actividade até do ponto de vista financeiro.

Já a TV não sabe o que é a subtileza. Há tempos, numa novela da TVI uma actriz aguentou durante dez minutos com dois sacos de plástico dizendo "Bacalhau da Noruega". A construção da cena só visava mostrar a marca. As novelas são pasto para a colocação de produtos, mas também séries ligeiras ou até dramáticas. Alguma publicidade é feita na ficção com brutalidade e insulto à integridade dos espectadores.

Até que ponto as estórias são construídas apenas para o "product placement"? Basta pensar que em todas as novelas há restaurantes, tascos, mercearias ou snack-bares com o objectivo de vender espaço publicitário. Se um anunciante quer espaço numa novela, são escritas cenas para o incluir? Há canais de cabo que já aceitam alterações nos guiões para introduzir esta publicidade não anunciada, como uma mini-série em estreia no Sci-fi Channel, Five Days to Midnight, que inclui produtos da empresa OMD Worlwide.

A empresa americana Sears pagou em 2003 um milhão de dólares para colocar produtos num "reality show" do operador generalista ABC chamado "Extreme Makeover: Home Edition", um entre muitos que apareceram agora em vários países, em que se faz a remodelação de uma casa privada de um dia para o outro.

O da ABC incluía cenas com produtos ou serviços prestados pelas Sears. Tal como as novelas, estes programas de renovação de casas são sintomáticos da intromissão do mercado na modelagem dos conteúdos. Na SIC Mulher, este programa de "reality TV" chama-se "Querido Mudei a Casa" e é igualmente uma acumulação de publicidade do princípio ao fim, desde os fornecedores das novas mobílias e acessórios aos prestadores de serviços, a que acrescem pseudo-reportagens intercaladas com empresas fornecedoras na área da decoração. Chegámos à era em que os intervalos de publicidade se transformaram em programas. Os programas são os próprios intervalos.

Com as novas atitudes dos indivíduos, com o zapping e o novo zipping dos gravadores digitais (a função que permite não gravar os intervalos), a colocação de produtos no meio dos programas veio para ficar. Poderá já ser uma fonte de receitas sem a qual muitos programas de entretenimento não existiriam. Poderia Querido Mudei a Casa existir se não fosse uma espécie de "reality advertisement", "publicidade de realidade", do princípio ao fim?

Deve haver regulação. Se há regras para os intervalos, horários, etc., porque não para a colocação de produtos em programas? Ela confunde os espectadores ao mascarar o papel dos patrocinadores dos programas nos conteúdos. Mesmo com a crescente literacia audiovisual dos espectadores, deve haver regras para toda a actividade publicitária e não apenas para parte. Uma organização de consumidores americanos, a Commercial Alert, solicitou à alta autoridade local (FCC) e à Comissão Federal do Comércio que regulem a colocação de produtos por considerar que ela ofusca a linha entre publicidade e entretenimento, "uma afronta à vulgar honestidade".

Onde os limites são mais necessários é na informação: pode vender-se espaço publicitário como se fosse informação? No programa matinal da TVI, Diário da Manhã, há uma rubrica quotidiana em que um jornalista (?) entra numa pastelaria que use Café Delta e faz perguntas banais aos clientes pelas mesas. O logótipo dos Cafés Delta é aposto num canto do ecrã enquanto dura a pseudo-reportagem em directo, identificando a publicidade do conteúdo. Mas a confusão persiste por ser um programa de informação. Pode dizer-se que a pseudo-reportagem não é jornalismo mas entretenimento. Mas não deixa de ser publicidade no fluxo do programa e não é explícito para o espectador que o programa é de entretenimento, pois há um jornalista ao lado da "entertainer" Júlia Pinheiro, a qual faz entrevistas como qualquer jornalista.

O perigo da infiltração da actividade comercial na informação é real porque se trata de publicidade mascarada de jornalismo. Nos EUA, a FCC agiu contra "talk-shows" em que "conhecidos" diziam maravilhas de medicamentos que teriam usado; tratava-se de publicidade encapotada da indústria farmacêutica. Entre nós, as diversas autoridades que existem para proteger os consumidores não dão por nada e assobiam para o lado. Os operadores argumentarão que a colocação de produtos deve ser feita com conta, peso e medida, pois caso contrário os consumidores não levarão a sério os produtos ou serviços publicitados. Mas a auto-regulação não é suficiente.