Eduardo Cintra Torres

A Pluralidade do Cristianismo em Televisão


A maior parte dos teledocumentários são frases ilustradas. São narrativas quase sempre lineares. O problema é ilustrá-las: que imagens mostrar para contar a "estória" escolhida?

O programa da BBC A Verdadeira História da Páscoa (RTP1, sexta) ilustrava a Paixão de Cristo com reconstituições dos episódios mais marcantes e do Templo de Jerusalém, acompanhando a narrativa com frases de especialistas e de peregrinos que, nos locais dos últimos dias de Jesus em Jerusalém, se manifestam com emotividade à flor da pele.

Este teledocumentário apologético convém para mostrar na Páscoa nos países de maioria cristã: bem narrado, bem ilustrado, emocionado quanto baste, sem pontos de vista diferentes dos consensuais excepto em detalhes pouco intrigantes ou não teológicos (como foi Jesus recebido em Jerusalém quando chegou montado num burro?). O programa reafirma a leitura maioritária dos Evangelhos. Não pergunta, responde. Ficamos a saber que a Paixão de Jesus terá ocorrido no dia 3 de Abril de 33.

Esta Verdadeira História da Páscoa inscreve-se no próprio calendário litúrgico. A televisão inscrita na liturgia. Não faz sentido vê-lo noutra época do ano. É um programa para cristãos verem na Páscoa, confirmarem a sua religiosidade, em especial os cristãos que na sexta-feira santa ficam em casa a ver televisão. No écrã, no canal do chamado grande público, a religião transforma-se em "Bíblia ilustrada" e não em cerimónias religiosas propriamente ditas: o programa passou na RTP1, enquanto a Via Sacra em Roma com o Papa passou na 2, o canal visto por minorias.

A Verdadeira História da Páscoa insere-se também numa busca por muitos cristãos da "verdade" histórica dos primórdios do cristianismo. A necessidade do factual marca os tempos modernos. Não basta a Palavra, é preciso a imagem, a prova científica. Muitos dividem-se entre uma religião baseada na linguagem metafórica e simbólica das palavras e uma ciência que pode contrariar a linguagem bíblica.

Uma recente série do Discovery Channel na 2 mostrava a seriedade do tema para as comunidades cristãs conservadoras americanas que recusam o darwinismo e o seu ensino aos jovens. Na presente existência factual e iconólatra, esses cristãos americanos não conseguem o que para os europeus, latino-americanos ou africanos é básico: manter a fé em simultâneo com a convicção na ciência.

Ao mesmo tempo, ocorre um crescente interesse pela verdadeira análise científica dos textos bíblicos e das provas arqueológicas. É o caso da excelente e invulgar série L'Origine du Christianisme, de Gérard Mordillat e Jérôme Prieur, cujos dez episódios o ARTE concentrou em torno da Páscoa (episódios 7 a 10 na sexta e sábado, 16 e 17.04). A série trata da transformação da história de Cristo, que à sua morte se inscrevia no judaísmo, numa religião autónoma, cerca do ano 150.

Os autores regressam à temática da aclamada série Corpus Christi (1997-8), centrada no Jesus bíblico. Trata-se de séries que se inscrevem numa tradição de análise dos textos bíblicos - mas apenas do Novo Testamento. De facto, dado que para os cristãos o Antigo Testamento (a Tora dos judeus) evolui inexoravelmente para os Evangelhos de Jesus, os estudiosos cristãos, institucionais ou não, leram sempre o Antigo Testamento da mesma forma, enquanto o Novo foi sujeito a contínua atenção e análise. Esta diegese, ou análise dos eventos narrados, do Novo Testamento está na origem da crítica literária e inscreve-se na própria história do cristianismo, o qual se apresenta assim como uma religião evolutiva, historicizante.

As Origens do Cristianismo filia-se nesta tradição milenar assumida em pleno nos últimos decénios pela crítica literária científica. Aqui, a novidade é que a análise dos eventos bíblicos passou da escrita para o écrã. Afirmam os autores em entrevista: "O que mais nos continuava a apaixonar era o Novo Testamento. Mas o que nos agrada é lê-lo como um livro, como um grande pedaço de literatura, como um documento, numa perspectiva literária, histórica, resolutamente laica."

A série é pois uma versão televisiva do que poderá ser um texto científico. Não é de estranhar que, em simultâneo com a apresentação no ARTE, a série saia em DVD (instrumento de análise) e em livro com o título "Jésus après Jésus, essai sur l'origine du christianisme". Quer dizer, os autores fizeram um ensaio em livro mas também audiovisual.

As Origens do Cristianismo assemelha-se, de facto, a um ensaio que poderia publicar-se numa revista académica de estudos literários, bíblicos ou históricos. A principal marca televisiva da série é a sua total austeridade visual: não se tratava de fazer uma "Bíblia ilustrada", como no programa da BBC, mas de analisar o texto bíblico. Os autores optaram por um paradoxo televisivo: As Origens do Cristianismo é um programa de televisão "sem imagens". É uma colagem criteriosa de extractos de depoimentos de eminentes estudiosos de vários países e várias ou nenhuma orientação religiosa.

A série "repousa sobre uma muito longa preparação em colaboração com os investigadores e sobre a preparação de um questionário individual 'à medida'", justificam os autores. "As respostas inscrevem-se numa hipótese geral de montagem do conjunto dos episódios. Não se trata em qualquer caso de entrevistas de tipo jornalístico, mas de conceber um relato como um livro que se escreve."

A austeridade amplia-se para o fundo negro e vazio do estúdio por trás dos depoentes: só interessa o que eles dizem, os únicos adereços são os livros que trouxeram consigo para apoiar afirmações.

Que outras imagens há? Raríssimas, e apenas de livros, de palavras escritas em manuscritos ou impressas em livros. Mesmo os dois ou três mapas mostrados só interessam pelas palavras que identificam localidades bíblicas. Esta série sobre a palavra bíblica assenta quase em exclusivo na palavra de quem a analisa.

Não cabe nesta crítica analisar os aspectos teológicos resultantes da composição da série. Os autores, e a série, defendem que o cristianismo depois de Cristo se teve de afirmar contra o judaísmo, "divórcio" que teve "terríveis" consequências, pois "do anti-judaísmo passa-se ao anti-semitismo", como disseram na mesma entrevista. Cabe apenas referir que a reacção crítica da comissão doutrinal dos bispos franceses (PÚBLICO, 09.04) se insere na atitude pluralística que quase sempre prevaleceu no mundo cristão e é, neste caso, o resultado natural de a série se instituir como um tele-ensaio: os autores têm uma tese e fazem a montagem das citações recolhidas para a provar. E inquietam-nos com mais perguntas que respostas. É o que faz qualquer texto científico.