Eduardo Cintra Torres

30 Anos, 47 Anos


O 25 de Abril continua na origem de parte dos poucos teledocumentários que aparecem. Mas, 30 anos depois, o 25 de Abril vai sendo reinventado. Não nos factos, mas nas memórias.

Felizmente, pois os factos começam a fartar, pelo menos a quem já os sabe de cor. Que mais há para dizer para além do contributo dos "media" para os rituais do regime? Sobram imagens, que tendem a fixar-se na memória, razão pela qual a fotografia é tão evocadora. E sobram experiências pessoais, momentos em que aquela pessoa é insubstituível e só ela relatará como se lá estivéssemos. A TV tem o poder de permitir o regresso ao passado através dos depoimentos vivos e das imagens fixas e em movimento que sobram para o presente.

Os 30 programinhas documentais Abril: 30 Anos, 30 Imagens, da autoria de Adelino Gomes e realização de Ivan Dias, juntam essa dupla capacidade evocativa do depoimento e da fotografia. Resulta plenamente o uso de imagens de um único fotógrafo, Carlos Gil. Ele esteve em momentos-chave do processo político em torno do 25 de Abril; algumas das suas fotos de reportagem transcendem o registo factual e a escolha do sítio certo, passam para a esfera da estética.

A opção permite recuperar o trabalho de Gil, revelando uma obra esquecida que alarga a iconografia destes anos. As imagens escolhidas revelam uma opção política do seu autor e, por causa disso, qualidade artística: como é possível que em reportagem e sem manipulação de pessoas e objectos fotografados, se perceba que um autor é de esquerda ou de direita, revolucionário ou conservador? Somente através da composição e da concepção estética e pela narrativa que o conjunto das fotografias vai criando ao revelar as opções de locais e eventos escolhidos.

As imagens ante-25 de Abril já mostram a capacidade de composição e de oportunidade de Gil. O funeral de Salazar é retratado através de gente que assiste sem expressão emotiva e é identificado pela capa da "Flama" na mão de um homem informando da morte do ditador. O consulado de Marcelo Caetano expõe-se na sua cabeça rodeada pelas duas pontas, quais garrotes, duma flâmula da Polícia Militar cujo símbolo era uma caveira - assim se criando, pela imagem, uma premonição do fim dum regime que então recuperava fôlego. Não admira que a censura proibisse a foto.

Toda a imagem tem narrativa e estas são descodificadas por um protagonista ou testemunha. Um testemunho interessante é o do hoje general Tavares de Almeida: no 25 de Abril esteve na Ribeira das Naus convencendo os leais do regime a renderem-se. A foto de Gil mostra o capitão revoltoso com a mão no ombro do seu superior que acaba de se render, o que o general explica hoje como sinal da camaradagem militar e bondade da acção revoltosa. O gesto simboliza a queda do regime sem sangue e também a impossibilidade de resistência. O 25 de Abril tinha que ser.

É também interessante o conceito do programa de alargar o 25 de Abril até aos anos 80, não parando no 25 de Novembro, como conviria a uma pequena parte do espectro político.

Transformadas aqui em televisão, as fotos de Carlos Gil são entretanto desrespeitadas em vários dos programas. O realizador optou por mostrar apenas uma vez ou até nenhuma a fotografia integral; ou então os limites do écrã de TV coincidem com os limites da foto, tornando pouco claro se estamos vendo a totalidade da foto. Como, a partir desse plano inicial, as fotos começam a ser exploradas por zoomadas e movimentos de câmara e misturadas com outras imagens, prejudica-se a fruição do objecto estético, o que é um paradoxo numa série que parte precisamente da qualidade documental mas também estética das fotos. É esse o único senão.

* * * Eu nasci em 1957, o mesmo ano em que nasceu a RTP, mas prometo aos leitores que não escreverei louvores a mim mesmo nem declarações destinadas a aumentar a minha auto-estima. Como fez a RTP.

Nas últimas semanas, a RTP1 repetiu a série Retratos de Uma Televisão, cuja excelência documental ficou diminuída pelo último e acrescentado episódio, demasiado centrado no louvor à RTP. E tirou os dinossauros do armário, a começar pelo Julius Isidrius Rex. Em programas de "kitsch" total, Isidrius & Ca. falaram pela milionésima vez da mesma meia dúzia de episódios e programas e das mesmas cantigas. Sempre as mesmas saudades, a mesma eterna saudade. E lá ouvimos, 40 e tal anos depois, a mesma Oração pelo mesmo António Calvário, e lá esteve a mesma Madalena Iglésias e a mesma Simone... Senhor, a teus pés eu confesso, quando acabará tanto passado? O passado supercalifragilisticexpi-glorioso da RTP nunca mais acaba de acabar.

Depois foi a festa da inauguração da nova sede, que coroa de êxito a difícil reestruturação da empresa. A mudança é importante porque a 5 de Outubro representava uma ultrapassada socialização do trabalho. As sedes da SIC ou da TVI mostram como há anos se trabalha nas grandes empresas, sejam ou não de TV. A 5 de Outubro, com centenas de pessoas fechadas em quartos de hotel, fomentava a inércia, a ausência de comunicação, a conspiração permanente. Em gabinetes instalados em quartos de hotel tende-se a fazer o mesmo que em quartos de hotel: lazer.

A nova sede, com um excelente estúdio e espaços de trabalho abertos, permite comunicação e transparência, que se trabalhe bem e a melhoria se reflicta no écrã.

Mas a festa da RTP foi mais do que isto. Consagrou uma política do governo que é das poucas que ele até agora pode mostrar, que correu bem, dentro dos prazos; a nova sede da RTP é a única obra pública do governo. Daí que 1/5 do conselho de ministros estivesse na inauguração. Tendo lá estado também, sem a ver em directo não quero referir-me à emissão. Mas, a haver festa, esta deveria ter sido a única, sem as semanas anteriores de "build-up" e sem a ressaca ainda no dia seguinte - porque ela continuou no dia seguinte, com mais uma "gala" (a banalização da palavra gala é a mesma da palavra evento), desta vez com "caras novas", nomeadamente as mesmas que já vemos há anos e anos no écrã.

Houve festa a mais para conteúdos a menos. Faltam os conteúdos, os programas. A Lacoste não festeja mudanças de fábricas para louvar a excelência das suas camisas. A Mercedes não passa a vida a mostrar os seus modelos antigos para vender os novos. A Nestlé não fomenta a auto-estima dos seus funcionários em público, e muito menos por semanas a fio. A moderação é uma virtude das empresas prestigiadas, das grandes marcas que têm produto para apresentar.