Eduardo Cintra Torres

E por Falar em Arte... Frank Sinatra


Entre nós não se usa a palavra arte como característica da televisão. É proibido. Arte e televisão são incompatíveis. Quando muito, ela serve para retransmitir outras artes. Que mostre concertos, teatro, que divulgue as autênticas actividades culturais - mas que não chame a si a palavra proibida!

Em países que estão mais à vontade com as palavras e com a arte, como os Estados Unidos, há muito que se considera a televisão como uma arte, não apenas um ofício, um "media" ou uma indústria. É claro - é quase um tratado da evidência - que a TV, fazendo parte das indústrias culturais de massas, raramente atinge graus de qualidade artística canónica. Mas acontece o mesmo em todas as actividades culturais.

Nesta sociedade complexa a definição de arte simplificou-se ao ponto de ser arte aquilo que um homem quiser. Há tempos um empregado da limpeza duma galeria britânica deitou fora uma obra de arte feita de lixo. Autor e galeristas acharam o caso "fascinating" e ainda puderam salvar beatas e latas que o ignorante proletário do terceiro mundo não identificara como arte exposta. Seria interessante saber se artista e galeristas acham que a TV produz muito "tele-lixo".

Sistematizo a relação entre a televisão e a arte em geral em três campos:

- A televisão como divulgadora da arte. Exemplos: Magazine (2), Sociedade das Belas Artes (SICN), Livro Aberto (NTV).

- A televisão como reprodutora de outras artes. Exemplos: concertos, óperas, bailados e filmes.

- A televisão como arte.

O primeiro e segundo campos são os que as elites nacionais costumam assacar como exigência à televisão. Está certo: divulgar e noticiar faz parte da missão normal de um "media" informativo, como a TV também é. Mas é a televisão como arte que mais poderia contribuir para promover a relação da arte com a população.

Os dois últimos campos ligam-se entre si. Os "media" não são apenas transmissores de conteúdos, são eles mesmos conteúdos. Os outros conteúdos têm de se lhe adaptar. Isso significa que, transmitido pela televisão, um concerto deixa de ser um concerto. Marshall McLuhan dizia que a TV era melhor para mostrar ensaios de orquestra do que concertos. O concerto feito para TV resulta melhor do que o concerto gravado de acordo com a maneira de ser do próprio concerto em sala.

Se um concerto é feito de maneira televisiva e resulta de e com qualidade artística, isso é arte. Ela deixa de estar associada apenas ao lado criativo e performativo da boa música mas fica ligada ao próprio "media" que criou o facto. A nossa tendência é a de apenas encontrarmos arte a montante da televisão, mesmo se for evidente que é a TV que faz a diferença, como nos concertos para jovens dirigidos e apresentados por Leonard Bernstein na CBS (1958-73), programas que cumpriam a observação de McLuhan: a parte de concerto era um anti-clímax em relação à anterior performance didáctica de Bernstein (DVDs Young Peoples's Concerts).

Quando há gravação de encenações teatrais em teatro, passe o pleonasmo, o resultado é um fraco programa de televisão e, por extensão, fraco teatro. Pelo contrário, se a encenação é feita para a televisão, o resultado pode ser boa TV e por extensão bom teatro, como o "Ajax" de Sófocles realizado por Herlander Peyroteo há mais de 30 anos (a RTP2 apresentou-o em 2002). No sábado, a RTP1 comemorou o Dia Internacional do Teatro sem teatro, antes com conversa sobre teatro: foi "televisivo".

Também no caso da ópera o espectáculo é aceitável ou até bom quando é feito para ou tendo em conta a televisão, como La Bohème, de Puccini, encenada por Zeffirelli no Scala que a 2 apresentou (26.03). No caso de uma gravação de encenação em sala, o resultado é geralmente sofrível, não funciona no ecrã. Em casa, a melhor ópera é que deixou de ser ópera de sala.

Há ainda obras propriamente televisivas a que podemos chamar artísticas se preferirmos ao conceito de arte romântico e modernista um conceito menos politizado e mais "técnico". Grande parte do cânone académico recusou durante um século que os "mass media" pudessem produzir arte. O crítico conservador inglês Matthew Arnold cristalizou um conceito que encontramos depois enraizado em correntes da extrema-direita à extrema-esquerda.

Segundo Arnold, em Cultura e Anarquia (1869), as ambições culturais da população urbanizada eram "cultura de massas" associada directamente ao desenvolvimento do capitalismo. O (pre)conceito arnoldiano ainda vive e recusa ver arte quando a televisão cria o que lhe é próprio com qualidades técnicas e outras que remetem para a transcendência. É quando a televisão é televisão, mesmo que seja indústria cultural e comércio (como as latas de Campbells de Andy Warhol).

Os programas de TV que Frank Sinatra gravou nos anos 60-80 estão agora disponíveis em 9 DVDs (Warner Music). Um deles, "A Man and His Music + Ella + Jobim", de 1967, é uma obra-prima da cultura popular urbana: Frank Sinatra a solo, com Ella Fitzgerald e com António Carlos Jobim. O que faz a arte não é apenas a música, os standards da música popular americana e de Jobim, é a concepção televisiva do programa: cenários com grandes massas ou vazios, adaptando-se assim ao formato, dimensão e resolução do ecrã caseiro; a opção pela profundidade de campo, tridimensional, em vez dos cenários verticais, bidimensionais, a realização, os planos. O próprio genérico constitui um belo ícone da cultura popular urbana e audiovisual: constrói-se de imagens citadinas e suburbanas e dos seus ruídos musicais (buzinas, máquinas, etc) que desaguam num arranjo da canção "Day In, Day Out".

Programas como estes distinguem-se como arte televisiva porque só poderiam ser programas de televisão e porque são insubstituíveis. Os catálogos da indústria do DVD ilustram a arte televisiva: séries de humor britânicas, grandes séries como os Sopranos ou Sete Palmos de Terra, espectáculos musicais como Swinging Bach, um concerto público na Marktplatz de Leipzig com momentos de espantosa interacção de Bobby McFerrin com a audiência (edição TDK, 2001).

Os tempos mudaram. Na Grã-Bretanha as indústrias culturais (termo depreciativo) subsidiadas são agora chamadas "indústrias criativas". Cá, desde 2001, a televisão já recebe apoios específicos do ICAM, o que representa a sua legitimação cultural oficial. Mas daí até se chamar arte à arte que a televisão cria vai um passo de gigante que ainda não foi possível dar, o que é uma perda para todas as actividades culturais.