Eduardo
Cintra Torres
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O Humor Que Mordeu o Gato |
"Diga Lá Excelência" (Dois, domingo) transpõe para o ecrã um programa da Rádio Renascença e do PÚBLICO. Em vez do registo psicológico de muitas entrevistas de hoje, o programa atém-se saudavelmente ao jornalismo clássico: perguntas de actualidade, apenas acrescentadas com pinceladas de personalidade. Fazia falta um programa assim, ainda por cima servido pela experiência e profissionalismo de vários jornalistas dos dois órgãos. No "Diga Lá..." a entrevista é diferente de outras na TV porque os jornalistas não assumem a postura e tiques de alguns tele-entrevistadores, nomeadamente na auto-importância. O estilo excessivo da entrevista televisiva fica à porta do estúdio: a "Excelência" é o conteúdo da entrevista, não a televisão. E foi a TV, terceira entidade do "Diga Lá...", que errou ao transpor para si o programa. Ao recriar um estúdio de rádio, a cenografia da Dois falhou uma característica basilar do programa: na TV, o "Diga Lá..." não é rádio, é televisão. Deveria ter encenação televisiva. É o que lhe falta. Outro programa de rádio que deu o salto foi "O Homem que Mordeu o Cão", projecto colectivo em torno do seu criador, Nuno Markl (TVI, quintas). Markl criou um registo na Rádio Comercial (agora na Best Rock FM) e obteve merecido êxito, partindo do quotidiano bizarro, anedotas e diálogos improvisados. Pela comunicação não-verbal e a interacção com os outros em estúdio, o quotidiano é fonte de reflexão lúdica e divertimento. Como estilo, usa a voz para enfatizar a anormalidade do normal e faz boa gestão das pausas. Mas Markl não comunica bem na televisão, a começar pela sua cara de careto de Podence. "O Homem da Conspiração" e "O Perfeito Anormal" (SIC Radical) já mostravam as suas limitações na TV. Na rádio, o ouvinte preenche com a imaginação os espaços da comunicação não-verbal e aceita um blá-blá de "companhia" e até um certo amadorismo, mas a TV exige mais ritmo, conteúdo e profissionalismo. Na TVI sobressai o mau improviso sobre textos mal amanhados ou boas ideias mal acabadas, como os "desbloqueadores de conversa". Uma hora do programa não vale 30 segundos do "Daily Show" com Jon Stewart (SIC-R). No "Homem Que..." uns amigos protegem-se atrás duma mesa no palco e dizem larachas mal preparadas e organizadas; banaliza-se o improviso que falha, como se errar, além de humano, fosse humor. No final, sobram duas ou três piadas. Na terceira emissão (11.03.04), esteve o humorista Bruno Nogueira, em fase de sobre-exposição: banalizou-se, repetiu-se, acrescentou piadas à pressa; só em pormenores revelou o génio escondido na garrafa. O génio do humor esfuma-se, como se vê em "Papéis ReSIClados" (SIC, quinta). Os "novos" personagens de Herman José não têm piada e são pálida sombra do Nelo e da Dália de há apenas três anos. Juntando episódios da sua fase SIC, José encena a sua decadência como humorista. No "Homem que...", encena-se nada com quase nada. Inverte-se a importância do importante e do insignificante, o que funciona em "talk-shows", não em programas de humor. "O Homem que..." é nisso uma espécie de "Seinfeld" sem arte nem piada. Markl volta ao palco no final e pergunta: "Mas então é só isto?" O público do Tivoli entra no jogo e grita essa frase. Conta mais a catarse colectiva do que o conteúdo da experiência: é a única vantagem, e nem sequer total, da TV sobre a rádio. Televisão a sério é o programa de humor "O Gato Fedorento" (SIC-R, sexta). Sem meios e sem orçamento, "O Gato..." mostra por isso mesmo a supremacia de conteúdo e qualidades do humor sobre a forma. É escrito e representado por quatro humoristas da nova geração - nascidos pós 25 de Abril. Ricardo de Araújo Pereira e Zé Diogo Quintela, a que se juntam Tiago Dores e Miguel Góis, nada têm a ver com a eterna moribunda revista. Estão mais próximos do "non-sense" britânico, aqui naturalizado português. Ao contrário do melhor Herman José, cujos textos mantinham com a "realidade" uma relação ainda lógica, o humor do "Gato..." transfigura "realidades" quotidianas, vira-as do avesso para as revelar por completo. Os sketches não recorrem ao brejeiro e ao palavrão; são do género: "A mulher que não acredita que o marido anda metido na droga", ou o "Encorning", diálogo surrealista em que dois dirigentes de empresa evoluem em gerúndios ingleses desde o "downsizing", até ao "a tua mulher anda-te a encorning". Os "sketches" captam tiques do discurso quotidiano, como "O homem a quem parece que aconteceu não sei quê", excelente criação de Araújo Pereira em que nunca se chega a saber de que se queixa um popular. Araújo Pereira é o melhor dos quatro na encarnação de personagens, mas a entrega total dos outros e a interacção entre eles contribuem para fazer um inventivo, hilariante e inteligente programa de humor televisivo. A falta de meios acaba por acrescentar genuinidade e ingenuidade à graça dos textos, personagens bem apanhadas e actuações dos seus criadores. Mas é incrível que géneros mortos e medíocres sejam rodeados de luxos enquanto estes bons criadores televisivos não têm meios: tudo é feito no espaço da sede da SIC, alguns "sketches" são gravados à primeira, com hesitações e falhas. "O Gato..." é uma aposta ganha dos seus autores e da SIC-R que lhes deu espaço (e provavelmente mais nada). A SIC está imbatível no humor, seja na SIC, na SIC-R, na SIC Mulher e até na Gold. Grandes séries de humor que passaram na RTP estiveram ou estão na SIC-R. Além do "Daily Show", está o incrível "Big Train", humor no fio da navalha, uma espécie de "Gato Fedorento" feito com meios, tempo e experiência. Entretanto, a RTP e a Dois estão a deixar passar completamente ao lado o comboio do novo humor televisivo. São desertos sem humor, à parte o "Contra-Informação". Nem mesmo aproveitaram Francisco Menezes, cujos primeiros e experimentais programas passaram na NTV e depois na RTP1. Os humoristas de qualidade e a despontar estão na SIC, na SIC-R e Markl na TVI. O "serviço público" deveria puxar a locomotiva da qualidade também no humor, mas a RTP deixa que os canais comerciais provem não ser preciso TV do Estado para termos bom humor televisivo. |