Eduardo Cintra Torres

O Quarto Poder É o da Opinião Pública


A presença do advogado Ricardo Sá Fernandes no Jornal da Noite depois de confirmada a prisão preventiva do seu cliente Carlos Cruz foi duplamente patética. Por um lado, pela primeira vez na história mundial um advogado chorou na TV. Por outro lado, apelou ao julgamento na opinião pública e o resultado foi o oposto: Sá Fernandes desapareceu dos ecrãs e da imprensa e o mesmo sucedeu à campanha mediática dos arguidos.

A defesa de Cruz, presença constante nos estúdios, já antes batalhava pela opinião pública. As TV mostravam os passos dos advogados para cá e para lá, com e sem malas de documentos. Porque não resultou o apelo de Sá Fernandes na SIC ao julgamento na opinião pública?

Ponho a hipótese de a defesa dos arguidos do caso de pedofilia ter perdido nesse julgamento de opinião pública, pelo menos por agora. Por isso os advogados saíram de cena. Primeiro os dos arguidos Hugo Marçal e Jorge Ritto. Os de Cruz perceberam tarde demais a mudança do "mood" da opinião pública. Este caso apela à análise do lugar e peso dos "media" e dos da opinião pública (no sentido de opiniões colectivas) na sociedade.

Sempre houve "julgamentos" destes. Marco António, com exemplar retórica, pôs os cidadãos de Roma contra os assassinos de César, cena que Shakespeare transfigurou magistralmente. Antes dos "mass media", a força da opinião pública mostrava-se na rua, como na oração fúnebre dita por António, na "caça às bruxas" em Salem, Massachussets. Estas manifestações públicas tendem em geral para manter os valores vigentes e a estabilidade social. Os actos de crueldade da sociedade na rua, por mais horríveis que sejam, "podem promover estados de integração social" (J. Carey).

À medida que a imprensa se afirma na sociedade, criando novos espaços de expressão, esses "rituais de excomunhão" foram desaparecendo da praça da aldeia. Exemplo? As três ou quatro "mães de Bragança" cujos maridos "se perdiam" pelo alterne: a explosão mediática do caso, antes e depois da capa da "Time", levou ao encerramento policial de três casas de alterne. Nos "media", sem "rua", o caso de quatro "mães" tornou-se nacional; logo, intolerável para as instituições do Estado.

Noutros casos, as manifestações indicam que a opinião pública sente as instituições bloqueadas e que só a força do número as desbloqueará, caso da "marcha branca" realizada em Bruxelas em 1996 depois de encontradas mortas duas crianças vítimas de pedofilia. "Sombras e Verdade", teledocumentário do ARTE e da TV pública RTFB, explica a angústia dos familiares das crianças e, com eles, do povo belga nesse longo e tenebroso processo de pedofilia: as instituições falharam totalmente, deixando espaço para especulações sobre o interesse de forças ocultas em que ele não chegasse ao fim (ARTE, 24.02). A mediatização partiu dos pais. O bloqueio das instituições belgas levou 350 mil pessoas à rua.

O caso português é diferente por não haver notícia de assassínios, a investigação não mostrar querer atrapalhar-se a si mesma e por os "media" estarem na origem das denúncias e não mais largarem o caso. Sem a mesma pressão, a "marcha branca" de Lisboa, embora significativa, não teve a mesma urgência, força numérica e resultados da original belga.

Tem faltado uma análise do papel social dos "media". Sublinho o social. Eles substituem "a rua" na expressão da opinião pública e assumem papel activo na construção de identidades e solidariedades comuns. Funcionam como instituição comunicativa da sociedade civil, se esta não se limitar às instituições mas for vista num sentido menos normativo, mais fluido, uma espécie de "estádio superior" da opinião pública.

No caso da Casa Pia, os "media", e em especial a TV, têm funcionado como instância de influência multidireccional entre as formas de poder e as expressões fragmentadas da opinião pública. É nisso revelador o facto de se terem calado as esferas de opinião que se colocaram do lado dos advogados dos arguidos mais "conhecidos". Dentro da interacção das múltiplas esferas e comunidades públicas que compõem a sociedade civil, alguma mudança da opinião pública levou por agora ao silêncio dessa área. Nem mesmo têm sido noticiadas nas últimas semanas as visitas de familiares à Penitenciária de Lisboa que, até à intervenção lacrimosa de Sá Fernandes, contribuíram para a construção da narrativa deste drama social.

Os "media", exprimindo a luta dos grupos e esferas da opinião pública pela autoridade interpretativa sobre o evento, espelharam o que parece uma já formada convicção da opinião pública acerca dos arguidos. Trata-se dum exemplo da interacção circular entre os "media" e as suas audiências (que são expressões da opinião pública e da sociedade civil fluida).

Certo ou errado, o julgamento pela opinião pública é simplista e sumário, mas poderoso. Ao contrário dos tribunais, os "media" constroem as narrativas judiciárias como "oposições binárias" e "entre motivos purificadores e poluidores". O dois autores que cito, J. Alexander e R. Jacobs, referem que a interacção entre a sociedade civil fluida e os media pode levar o sistema a reagir. No caso Watergate, foi a mobilização de influência e opinião pública com os "mass media" que forçou Nixon a demitir-se.

Já o caso do espancamento do motorista negro Rodney King por polícias em 1991, mostrado milhares de vezes na TV, teve em tribunal um fim diverso do esperado por "media" e opinião pública, convictos da culpa dos agressores. Daí a violência nas ruas de Los Angeles quando se soube da absolvição.

As narrativas dos casos de pedofilia na Bélgica e Portugal estão em aberto. Esperam o veredicto judicial. Estará a opinião pública em interacção com os "media" já formada, como no caso Rodney King? Esta questão leva-me a manter em aberto a possibilidade de os "media" transportarem em si um quarto poder autêntico e não "o quarto equívoco" que Mário Mesquita define num dos mais importantes livros sobre "media" publicados em Portugal nos últimos anos (MinervaCoimbra, 2003).

O poder dos "media" é-lhes informalmente outorgado pelas audiências, que são esferas também informais da sociedade civil. Quando um país vive o rame-rame do quotidiano esse poder não se nota. Quando parte da população considera haver rupturas que precisam da sua intervenção directa ou através dos "media", esse poder manifesta-se. Assim visto como coisa social, o quarto poder dos "media" é o poder da sociedade civil fluida em acção mais ou menos visível e com carácter colectivo "de rua" por não lhe permitirem, como em eleições, exprimir-se na soma dos indivíduos