Eduardo Cintra Torres

Tragédia Televisiva em Véspera de Eleições


Com os ataques terroristas em Madrid, mais uma tragédia inesperada ocupou um país e a sua televisão. A sensação do colectivo em que vivem os indivíduos transfigura-se num segundo, passando de sociedade a comunidade. Após a estupefacção, a TVE depressa entendeu a dimensão da tragédia através de um instrumento de medida essencial que muitos preferem não mencionar: o número de mortos. Em poucas horas se passou de cinco vítimas mortais para quase 200.

A televisão instalou-se nos locais trágicos, em especial naquele que simbolizou toda a tragédia, a Estação de Atocha, a maior da capital. As imagens aproximadas ao comboio desventrado recordaram o "ground zero" do 11 de Setembro. A emissão normal foi substituída por um fluxo contínuo de um só evento. Numa Espanha calejada por décadas de terrorismo, as câmaras hesitaram menos nas imagens de sangue, feridos, moribundos e cadáveres do que noutras tragédias televisivas, como a de Castelo de Paiva ou o 11 de Setembro.

Nestes momentos a TV é essencial. A rádio é um importante complemento de informação durante as tragédias. Mas não substitui a TV, porque a imagem mostra o indizível, ocupa e explica o silêncio de horror. Os temas, a linguagem, as imagens e os comportamentos do fluxo televisivo seguiram a descrição que fiz das tragédias televisivas noutros casos, confirmando a existência de um género próprio da televisão por ocasião destes eventos imprevistos. Mas houve uma diferença: a duração.

Esta tragédia televisiva teve um desfecho antecipado porque as eleições a isso obrigavam. Era preciso fechar o evento ainda na sexta-feira, antes do período eleitoral de reflexão. Noutras circunstâncias, a tragédia fechar-se-ia ao quarto dia, com as mesmas manifestações de sexta e/ou com cerimónias religiosas em que participassem o Estado, as igrejas e a sociedade, esta através dos familiares das vítimas e das massas. Mas, a três dias das eleições, o evento de quinta-feira teve a catarse nacional logo na sexta-feira ao fim do dia, com as impressionantes manifestações simultâneas por toda a Espanha, que a televisão em directo transformou numa só, provavelmente a maior manifestação que já se realizou na História, neste ou qualquer outro país.

A transmissão das manifestações pela TVE seguiu à risca o manual da televisão cerimonial, incluindo a alteração do papel dos jornalistas, passando de relatores de factos para evangelistas, que são relatores empenhados. Mas, no âmbito desse tipo de transmissões, a emissão da TVE foi de um profissionalismo sem falhas.

O encerramento antecipado da tragédia teve, porém, uma consequência inesperada: a interpretação política proposta pelo governo já podia ser posta em causa, o que é muito difícil de suceder durante a tragédia (e não sucedeu): quem ousaria contrariá-la perante dez milhões de pessoas na rua?

A oposição à leitura preferencial dos ataques terroristas (a atribuição à ETA) tinha de manifestar-se de imediato, após as manifestações de sexta mas antes das eleições. Desrespeitando a lei eleitoral, alguns milhares de pessoas vieram para as ruas de Madrid no sábado à noite tentando impor a interpretação até então minoritária nos "media" (a atribuição à Al Qaeda) para daí partirem para uma abusiva atribuição de "culpas" dos atentados ao próprio governo de Aznar.

A televisão oficial espanhola, extremamente dependente do Governo, não mostrou esta manifestação, apesar de ela ser significativa do ponto de visa político. É evidente que dez mil manifestantes em Madrid não se comparam aos dez milhões da véspera em toda a Espanha, mas a ausência de qualquer notícia foi um acto de censura condenável.

Não vale a pena dizer que todo o terrorismo é igual, porque o mesmo se pode então dizer das guerras. É igual nos actos, não nas motivações. Faz toda a diferença política (e portanto eleitoral) se o atentado terrorista for obra da Al Qaeda. Isso mesmo perceberam as duas organizações terroristas, ETA e Al Qaeda, ao apressarem-se, uma a desmentir, a outra a reivindicar repetidamente os atentados. Tal como o Governo, tal como os manifestantes de sábado, também os terroristas alegados ou culpados tinham pressa de ser ouvidos antes das eleições sobre os atentados.

Depois de uma atribuição subjectiva à ETA baseada em factos objectivos anteriores, o Governo cessante viu-se obrigado a apressar a divulgação de novos dados concretos da investigação, apontando para a Al Qaeda, mas não pôde contrariar a impressão de manipulação informativa na quinta e sexta-feira de manhã. Essa manipulação surgia domingo de manhã menos das informações sucessivamente prestadas pelo Ministério do Interior do que da contínua manipulação governamental sobre a TVE, verdadeiramente intolerável numa democracia dos tempos actuais.

A meio da tarde de domingo, os resultados das eleições espanholas eram uma incógnita em função da vertigem de acontecimentos desde quinta-feira. Mas isso só acontece nas democracias desenvolvidas, mesmo onde o Governo controla a informação da TV do Estado. Entretanto, na Rússia, onde o sufoco da sociedade civil é enorme e a democracia é limitada, as eleições resumiam-se a um referendo a Putin.

As televisões portuguesas deram à tragédia espanhola merecida importância, enviando vários equipas de reportagem. A RTP1 tomou a dianteira, mas SIC e SICN, e também a TVI, recuperaram bem. Houve alguns aspectos duvidosos nas coberturas. A RTP1 entrou em directo na quinta às 19h00, mas na sexta, dia das manifestações antiterroristas, preferiu dar o Preço Certo em Euros. Ficou a dúvida: o directo de quinta visava contrariar o futebol na TVI? A informação vale por si ou é um produto comercial?

No sábado à noite, a SIC Notícias e a TVI deram uma importância exagerada às manifestações contra o Governo. Se é verdade que o seu significado político era importante, as transmissões quase prometeram sangue e efabularam expectativas quanto ao número de manifestantes. Foram, todavia, um antídoto à censura da TVE.

Em muitas horas da emissão da TVE, nunca ouvi a "pergunta mais estúpida", como a definiu Peter Jennings, da ABC, no 11 de Setembro: "O que sente?" Mas ouvia-a feita por uma jornalista da RTP1 nas ruas de Madrid. Será que não aprendem?