Eduardo Cintra Torres

Isto Está Tudo Ligado (do 1 ao 5)


1.Coincidindo a festa de aniversário da TVI com o Entrudo, animadores e jornalistas do canal - que são ali vistos como animadores - apalhaçaram-se. J.E. Moniz, que também o fez, justificou com a capacidade de se rir de si mesmo. É uma boa justificação. No Funchal, Alberto João Jardim também se mascara. A coisa não me escandaliza como aos moralistas de esquerda e direita que dominam a nossa superestrutura pensante. Passe a incompetência e o "kitsch" da festa, há uma humildade e o tal saber rir de si mesmo que valorizo.

A TVI apalhaça-se por ser essa uma forma que escolheu de se ligar a um amplo público. Não só se ri de si, mas faz uma opção social: encena uma resistência no sentido sociológico contra o sistema de poder vigente, com a qual os despossuídos se identificam; tanto assim, que deram uma vitória esmagadora no "share" ao Carnaval TVI.

2. Os poucos segundos de TV que mostraram a libertação/detenção de João Vale e Azevedo chocaram milhões e motivaram a imediata alteração de preceitos legais para o tratamento de seres humanos em trânsito pelo nosso sistema prisional. As imagens confirmaram-me o que aqui escrevo há anos: a TV favorece a democracia e a justiça. Os patriarcas do nosso sistema político logo puxaram da sua Ladainha Nº1, Avé Comunicação Social: ainda bem que as TV lá estavam, etc.

Se Azevedo tivesse saído em liberdade as mesmas pessoas puxariam da sua Ladainha nº2 perante as mesmas imagens: que horror, não respeitam a vida privada das pessoas, ele não deu autorização, etc.

A estética daquelas imagens é a que associamos aos "paparazzi": planos grosseiros captados de longe, "zoom" puxado ao máximo revelando as tremuras da câmara. A estética de Azevedo saindo da cadeia era idêntica à de Diana em "bikini" com Dodi no iate ou duma qualquer princesa inglesa ou monegasca engalfinhada com um namorado ocasional. Só os olhos que vêem não vêem a mesma coisa. Daí as duas ladainhas. Os jornalistas ou recebem louvores ou pagam a crise.

3. Aconteceu o mesmo com a mama de Janet Jackson. Olhos que vêem milhares de maminhas na ficção televisiva chocam-se com o desvelar-se do "silicone valley" da menina Jackson. O "evento" motivou mais mensagens na "web" que o 11 de Setembro. Parece tão incompreensível esta súbita ofensa que a pessoas avisadas como a nossa Clara Ferreira Alves deu-lhes para insultar um povo inteiro, uma das coisas absurdas que se pode fazer. Por ela vi claramente escrito que os americanos são «a nação idiota» ("Expresso", 14.02.04). Insultar uma nação é o mesmo que insultar uma raça ou uma orientação sexual, mas, tratando-se dos americanos, é politicamente correcto.

A mama da Jackson teve impacto universal porque a) foi em directo; b) era "realidade", não "ficção"; c) foi inesperado; d) os espectadores apropriaram-se do evento, levando os "media" a ocuparem-se do caso mais que o necessário, criando uma bola de neve temática.

E qual a razão, por assim dizer, para milhões se apropriarem da mama da Jackson? Porque a) os americanos têm as suas leis escritas e não-escritas, que ali foram violadas, o que motiva debate; b) é próprio do humano mitificar temas tabus e em simultâneo discutíveis; c) a má-língua social sempre divulga e debate a moralidade vigente; d) o tema proporcionava-se a uma sociabilidade - falar no café, emprego, casa, "web" - cujo único objectivo é permitir-nos combater o nosso maior inimigo, a solidão; e) o "blá-blá" é um prazer genial, é a sociabilidade vivendo-se a si mesma, usando um qualquer tema, seja a libertação-detenção de Vale e Azevedo ou a mama da Jackson. Nós tivemos a nossa mama da Jackson, que foi o pontapé do Marco. Somos, também, uma «nação idiota». Todas são. Sempre vistas de longe, as multidões são todas iguais.

4. Já poucos se surpreendem com as ligações que fazemos entre factos reais e factos mostrados ou criados pela ficção. Aquando do 11 de Setembro, muitos chocaram-se com as referências de populares ou especialistas ao cinema e à arte. Como se a relação fosse moralmente condenável. Ora ela é tão antiga que remonta à idade das cavernas: os animais pintados em Altamira e Lascaux são as nossas primeiras ficções.

O cinema e a TV animaram os bichos das paredes cavernais. A abertura dum artigo de Frank Rich no "New York Times" (22.02.04) exemplifica: "Quando os tratadores de George W. Bush lhe puseram o guarda-roupa de Tom Cruise no filme 'Top Gun' (1986) para uma dança vitoriosa a bordo dum porta-aviões não pararam para pensar que ele poderia em breve enfrentar um opositor passível de se caracterizar com mais persuasão noutro papel de Tom Cruise. John F. Kerry foi na vida real camarada de Ron Kovic, que Cruise representou com grande aplauso no filme 'Nascido a 4 de Julho' (1989). Tal como o herói do filme, Kerry foi condecorado na guerra do Vietname e tornou-se depois estrela activista dos Veteranos do Vietname Contra a Guerra."

Reconheço que cometi o pecado de ligar a nossa realidadezinha à nossa ficçãozinha ao ver no PÚBLICO a foto da estátua de Sá Carneiro que se ousará colocar no Areeiro. É ainda pior que o actual monumento do mesmo escultor que lá está. O actual é apenas horroroso: a nova estátua, além de horrorosa, parece um boneco do Contra-Informação.

5. Isto está tudo ligado, desde a primeira palavra. Não há onde a política não se entrelace com os "media" e em especial a televisão. É ainda o "New York Times" que descreve (17.02.04) a televisão da Rússia de Putin como igual à dos tempos soviéticos: é só Kremlin. E o "Financial Times" (21.02.04) fala de famílias inteiras da Coreia do Norte que fogem para o Sul depois de vislumbrarem a TV capitalista de Seul. Isso só acontece por milagre meteorológico, dada a barreira de interferências levantadas pela Coreia do Norte. Moon Tae-sung, de 17 anos, subornou guardas fronteiriços e passou para a China, onde começou por ver o "Titanic". Diz ele: "Vi-o cinco vezes."

A televisão é terrível para a política, no melhor sentido da palavra terrível. Dois ou três minutos do discurso de Howard Dean após as eleições primárias no Estado do Iowa deitaram por terra o seu esforço de anos para ganhar a nomeação dos democratas às eleições presidenciais. No discurso, o homem mostrou um verdadeiro "self": irascível, insuportável, sanguíneo. Bastaram minutinhos reais para os americanos ficcionarem o que seria se ele ocupasse a Casa Branca. Foi a televisão que lhes mostrou isso.