Eduardo Cintra Torres

Pobretes mas Alegretes


As mudanças registadas na RTP alavancaram-se na miserável situação financeira e organizativa que o passado deixou a este governo e à nova administração.

Se esse foi o motivo, formularam-se entretanto alterações na aplicação do modelo de serviço público, agora menos comercial. Mas, apesar das mudanças positivas, feitas ou à espera de tempo e dinheiro, mantém-se o núcleo do modelo político e programático anterior, numa coincidência de valores que, mais do que de um bloco central, resulta porventura de concepções nacionais arreigadas na cultura política e na política cultural do país.

Não havendo quanto à prática actual do serviço público o mínimo debate público e o mínimo protesto visível por parte das elites e da sociedade civil em geral, temos de considerar uma de duas: ou há uma espiral de silêncio que ainda não coçou a borbulha que o rebenta ou a sociedade está realmente satisfeita com a situação televisiva.

Mantêm-se no Estado todos os canais que vinham de trás, incluindo a RTP África, o NTV e, na rádio, a Antena 3; o padrão da Dois mantém semelhanças com a RTP2; não houve um corte radical com o modelo de um canal "de massas", outro "de minorias"; a RTP1 permanece uma estação comercial, tutelada pela publicidade; imperam constrangimentos comerciais na organização da grelha da RTP1 para se obter a maior parte de audiência ("share"), sendo nisso vital o futebol; a sua presença opressiva na grelha impede uma programação consistente menos comercial.

A falta de dinheiro, em parte devido à necessidade de o aplicar em indemnizações de pessoal e não em programas, é um dos responsáveis por esta dependência da publicidade na RTP1. Mas enquanto existir publicidade na RTP1 a estação será comercial na programação e "scheduling" (grelha horária). A falta de dinheiro também ajuda a explicar a dependência da 2: de um modelo ainda próximo da RTP2; mantêm-se as Televendas.

Passe o paradoxo, a 2: exibe pobreza. Vestiu-se como um frade mendicante, que não ostenta. Mostra-se de tal forma canal pobrezinho que é fácil os espectadores sentirem goradas naturais mas erradas expectativas de grandeza; e, em consequência, não vêem as efectivas melhorias na programação do canal: coerência e respeito dos horários, novos programas, noticiário limpo e escorreito, melhor aproveitamento de programas já existentes, adequação da programação aos objectivos.

A ligação à sociedade civil tem assentado num modelo pouco temerário: senta-se a sociedade civil à mesa em estúdio e conversa-se sobre os seus temas. É pouco, mas não é mau. Os programas Tudo em Família e Causas Comuns, ambos com boas apresentações (M. Mercês de Melo e Mário Carneiro), abarcam uma lista irrepreensível de temas de interesse e debatem sem o estilo excessivo e/ou o "kitsch" habituais na RTP1, SIC e TVI.

Mas há também que reflectir sobre a incapacidade e receios que a sociedade tem revelado, não aderindo com ideias, meios e vontade à primeira proposta generosa que o Estado lhe faz a nível da TV desde 1957. Votando à esquerda ou à direita, a sociedade portuguesa é basicamente conservadora. Não arrisca, e depois não petisca. Neste sentido, a 2: é o espelho não só de um Estado falido mas também de uma sociedade pobrezinha. A superestrutura ideológica da utopia rural, pedinte e coitadinha de Salazar e do Padre Américo ainda resiste. Se as elites desconfiam e a sociedade se retrai, a 2: não pode dar mais.

Mantiveram-se bons programas, como Bombordo, A Alma e a Gente, de José Hermano Saraiva, Por Outro Lado e o magazine de ciência 2010. O Parlamento ganhou horário adequado. O Jornal 2 cumpriu a promessa da meia hora. Há novos programas, como o Pop Up, um magazine de cultura urbana bem esgalhado, ou o Etiqueta, cuja tolice me parece desadequada quer para o público alvo (os mais novos) quer para outros públicos. O Conselho de Estado só falha no nome pomposo, que não corresponde a um espaço de diálogo que é ameno e não usa a teatralidade e a dimensão excessiva de um Prós e Contras (RTP1). O Magazine substituiu o Acontece sem sobressaltos públicos. Aos bem organizados horários infantis e de documentários faltam imaginação e orçamento para produção nova e nacional. Enquanto não houver um programa inovador para miúdos, esse bloco horário não sairá do limbo.

Se a boa aplicação do dinheiro público deve ser um objectivo primordial de quem o gere, também é certo que existe um ponto em que a razoabilidade tem de ser considerada. Um paradigma do rapar do tacho na 2: é a adjudicação de programas abaixo dos valores do mercado, o que se repercute no que se põe no ecrã. A direcção do canal optou por produzir programas novos com empresas ou até produtores individuais que praticam preços abaixo dos dos produtores independentes.

A exibição da pobreza da Dois está nos cenários, que são a cara, a pele de um canal de TV. A Dois sofre bastante pelo aspecto pobrezinho e amadorístico de quase toda a sua encenação. Poupam no papel de cenário, na madeira, alumínios. Os cenários parecem saídos dum canal local que tivesse existido nos anos 70 e contrastam com a imagem moderna do logótipo e grafismos.

Os últimos dez anos de TV foram muito concorrenciais e habituaram-nos a estúdios cheios de luz e cor e em geral espaçosos. Se pequenos, arranjam-se maneiras astuciosas de sugerir espaço. A SIC e a SIC Notícias têm mantido com pouco dinheiro um certo ar de espaço agradável que também é importante para quem vê. Em programas como Outras Conversas ou a conversa de Mário Soares com António J. Teixeira, o estúdio não é grande, os cenários são simples e baratos, mas respira-se.

Na 2:, quase todos os novos programas estão com falta de ar. Apresentadores e convidados parecem encostados ao fundo como nos anos 50; os cenários parecem barreiras intransponíveis compradas na feira da Ladra. Sem transparência. O cenário do Clube de Jornalistas parece a câmara mortuária de escribas de algum faraó embalsamado no fundo de uma mastaba do mais antigo Egipto.

Há também faltas de profissionalismo. No Magazine, a apresentadora Anabela Mota Ribeiro e os entrevistados sentam-se a uma mesa de um verde alface tão berrante que, com a iluminação, a cor salta-lhes para a cara e as mãos. Ora não é normal uma cenografia televisiva que consegue pôr Anabela verde e convidado verde. Nem depois de um mês mudaram de mesa ou de cenógrafo. Pode ser que lá mais para o Verão as pessoas da 2: já estejam menos verdes e mais maduras.